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terça-feira, 10 de março de 2009

Rigor Mortis

Estava eu há poucos instantes almoçando. Próximos a mim, uma turma de colegas de trabalho se ajuntava em torno de um televisor. Um apresentador vociferava jargões populares de um indizível grotesco ao que desfilava, tal e qual uma noiva - reduzindo apenas a semelhança, o fato de ter policiais e repórteres no lugar de padrinhos e testemunhas - um cadáver crivado de balas.
A exceção ficava realmente por conta somente, e tão somente, da mudança dos padrinhos e testemunhas, talvez faltasse também alguém jogando punhados de arroz, não me recordo. Assim como no casamento haviam parentes chorando e homens calados, temendo serem os próximos a protagonizar aquele espetáculo. No lugar do carro de "recém casados" havia a viatura policial.

Os telespectadores se aglutinavam em uma minúscula mesa, tendo à frente o momentaneamente ignorado almoço, assistindo à barbárie perpetrada com uma fúria semelhante à que o apresentador demonstrava ao narrá-la. Alguns viam a cena como quem estava sequioso de vingança, outros se reservavam a lançar um olhar circunspécto e de uma morbidez inerte.
A maioria, sem dúvida, era composta pelos vibrantes "torcedores do túmulo". Alguns literalmente riam ao ver o que "o crime" tinha feito com aquele sujeito. 

Vingança. Quem trabalha tanto para ganhar tão pouco vive sequioso de vingança. Uma vingança contra os que trabalham no crime e ganham muito mais do que eles, que tanto se esforçam para ser honestos, para sobreviver batendo os braços(sem bóias, muito menos salva-vidas) num oceano de adversidades. Os que já não vibram apenas analisam. Analisam a tênue linha que os separa daqueles que matam e daqueles que morrem, buscando se aproximar cada vez mais do que mata. Menos mau que seja dessa forma. - Pensa ele.
A diferença que poderia ser ponderada com mais lucidez é a existente - cada vez em menor grau - entre o criminoso, o crime e o fomentador do mesmo. A demanda pelo crime é cada vez maior. A felicidade daqueles que gritam ao ver o estropiado crivado de balas, alimenta esse mercado de sensacionalismo midiático fantasiado de jornalismo. Quem é mais culpado pela morte? Aquele que mata, aquele que participa do tráfico em razão da pobreza ensurdecedora ou aquele que, através da sua riqueza, desequilibra a balança econômica provocando essa pobreza?
Por outro lado, cabe pensar quem é mais reponsável pelo sensacionalismo midiático? O crime que assola a cidade, o "jornalista"(com corretas aspas) que se presta a praticá-lo ou a sociedade que, bem como no vampirismo, se alimenta do sangue que é vertido nas telas?

Falando em sangue, me vem à mente algo que sobremaneira me chamou a atenção. O sangue jorrava aos borbotões dos buracos de bala e o morto ainda se encontrava mole. Como sabem, a variar pela climatização, o rigor mortis chega ao morto dentro de 3 ou 4 horas passadas ao falecimento. A julgar pelos 40 buracos de bala(em média) no cadáver, pressupõe-se a  impossibilidade da polícia ter chegado à cena com o indivíduo ainda vivo. Ao chegar lá, a polícia ainda teve tempo de analisar a cena do crime, isolar a mesma e só então chamar a equipe de televisão, que prontamente chegou ainda encontrando o cadáver sangrando em abundância tamanha é a eficiência do sistema que alimenta o sensacionalismo midiático que hoje assola a televisão, colocando para escanteio o jornalismo informativo sério à base de pontapés.

Enquanto isso a sociedade engole o almoço com avidez inferior à que engole as informações sensacionalistas, e sem se preocupar com o sangue que permeia a cena de vingança e respinga nos seus pratos. A sociedade, morta há muito mais tempo que o cadáver televisionado, apresenta agora o rigor mortis através da impiedade com a qual torce para haverem mais e mais mortos que desfilem ante eles, alimentando a sede de vingança e mostrando a dureza do povo, refletida em programas de apelo popular.

Nesse momento o morto é carregado por dois policiais que o lançam dentro da viatura, molinho molinho.

7 comentários:

Gabriel Pinheiro disse...

Meu caro irmão,
o cadáver é uma noiva imposta. Como nos tempos medievais, em que assim faziam os pais com os filhos que queriam deles a herança, assim se faz hoje em alguns cartéis do pseudo-jornalismo. Os pais da casa, ao lado dos papas dessa nova religião funesta, se irmanam e decidem o cadáver a ser casado com alguém, um eleito para para a função de, fardão preto envergado, abraçar-se à morte dia após dia, novar, casar com ela em uma inevitável poligamia. Casam-se às centenas, aos mlhares. Os apresentadores babam por esas noivas podres, capazes, com as enzimas da putrefacina e da cadaverina, de atrair paladares, que se afastam do almoço, do café, do jantar, para apreciar esse farnel, que a eles se afigura mais saboroso.
É a lei da oferta e da procura. No caso, infelizmente, ambas aumentam, exponencialmente, todos os dias.
Forte abraço,
Gabriel

Unknown disse...

É amigo, infelizmente cada dia que passa surgem mais crimes e por incrivel que pareça existem pessoas que gostam de ver essas misérias alheias.
Eu sinceramente não entendo esse gosto, pois odeio ver isso, e não assisto mais alguns jornais, principalmente na hora do almoço. Prefiro ler jornais na internet, porque eu seleciono o que realmente é importante e não sou obrigada ao invés de tomar suco de morango meio-dia, ver um líquido vermelho "escorrendo" pela TV.
Mas, confesso que acho exagero por parte das emissoras expor tantos crimes no "cru". Será que não existem pessoas para pensarem em outros assuntos que seriam interessantes ao telespectador, ao invés de mortes e cardaveres, ainda mais na hora do almoço?

Bem, eu não assisto e não perco nada em ver jornal meio-dia!

beijo, amigo!
Camile

Textos ao Vento disse...

Taí, gostei do blog e da narrativa. Palavras bem colocadas e, sobretudo, bem situadas. Tenho muito apreço pelas narrativas do cotidiano, ainda mais quando esta serve para endossar um crível argumento, como o seu, acerca dos destemperos midiáticos nessa sociedade formatada para que tudo seja consumo, inclusive a miséria alheia. Parabéns pela iniciativa do blog.

Seu amigo Zeca

Jamerson disse...

Bom meu caro Angelo.
Se ter que engolir goela abaixo na hora do almoço tanta violência, pior ainda é quando essa violência está perto da gente, quando conhecemos os protagonistas do espetáculo dos horrores. Conhecia, de vista, uma das vítimas do circo que mira de ontem. É triste ver jovens casando-se com a morte. Não agüento mais ouvir por aí as resenhas sobre esta baboseira toda.
Definitivamente, não dá mais, alguém tem que fazer alguma coisa...
Ah! Hoje eu tinha que assistir, sabia que iria passar alguma coisa sobre este conhecido que foi assassinado. Acabei até vendo algo que me deixou mais contente. Em uma das reportagens em que o repórter geralmente humilha o acusado por ser pouco letrado ou bem informado. Houve uma quebra de expectativa muito boa: quando o repórter começou sua medíocre entrevista, o rapaz, que estava preso por estar sendo acusado de tráfico de drogas, questionou ao jornalista, por que ele não foi entrevistar o Coronel da Polícia Militar que está preso, ou por que ele não foi para Brasília entrevistar Fernando Collor de Melo, que depois de ter roubado tanto na Presidência, foi cassado, voltou como senador e agora vai administrar a verba do Bolsa Família. O Bem informadíssimo traficante, ainda fez uma observação muito pertinente. Perguntou ao repórter se ele achava que esse dinheiro chegaria ao destino correto. O jornalista, vendo que com aquele bandido ele não teria espaço para conversar nenhum papo idiota (ou porque não tinha repertório cultural para conversar com alguém que pensa), terminou a entrevista.

Robledo Castro disse...

Taí que, vez em outra, procuro um novo e bom blog para ler e muitas vezes não encontro. Dessa vez o bom blog veio até a mim.

Cara, gostei do tom crítico do seu texto. Tenho vontade também de expressar coisas parecidas, mas tá faltando pegada e disposição. Já linkei seu endereço no “Palavras Informais”. Disseminemos todos o que há de bom na net.

Abraços e obrigado pela visita! Passarei mais vezes por aqui.

Caio Marques disse...

Obrigado pela visita. Muito bom seu blog, já adicionei a meus favoritos, muito bom o texto.
Abração.

Lucas Ribeiro disse...

Em primeiro lugar quero parabenizá-lo pelo blog.
As palavras e opiniões soam como um cidadão insaciável, em criticar acertadamente uma parte da mídia jornalística, extremamente sensacionalista e espetaculosa, e também a sociedade, por sua vez, acomodada na frente da TV. Se sentar na hora do almoço e ver corpos destroçados pela violência urbana virou moda. Os Jornais ao invés de informações pertinentes e necessárias de utilidade pública, cultura dentre outros assuntos, insistem em que a população ache interessante e normal o terror mostrado na TV. Gerando um grande cenário de representação do terror. Um verdadeiro espetáculo.
Coitado do Howard Beale, papel interpretado em um filme chamado Rede de Intrigas. Que aborda a mídia jornalistica nos EUA, da qual, a mídia televisiva Brasileira e da Bahia é correligionária.

Se puder veja esse filme. Um abraço cara.