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terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Orgulho de ser humilde

Bom,

Quase todos que aqui frequentam, vêm apenas para ler os meus contos, sei disso.
Porém, hoje acordei com pensamentos diferentes. Lembranças de coisas que há muito eu tenho pensado, subitamente misturaram-se a coisas que estou vivendo e criaram vida em uma espécie de poesia.

Quem nunca conheceu alguém que orgulha-se da própria modéstia sem ao menos se preocupar com a contradição da frase pronunciada?

Triste e dura como a realidade é, tem sido e será, eis aqui o pequeno monstro que abortei essa manhã:


A presença da ausência


Hoje me choca a presença.

A presença da ausência em tudo

E de tudo.


O orgulho de ser humilde,

De ser o lado A do lado B.

De beber e fumar um baseado

Pra ser diferente do convencional

E criar uma convenção ainda mais excludente em sua essência.

Aceitar as diferenças apenas dos que me são iguais.


De ser o Gandhi déspota.

Ser o Cristo que condena

Sem ter sido condenado por nada ou ninguém.


O totalitarismo alternativo

É ainda mais cruel do que qualquer fascismo convencional.


Hoje eu olho fotos de ontem

E, subitamente, lembro de poesias que nunca li.

Vejo as jogadas perfeitas logo após o cheque mate.


Tento apagá-las

Mas são indeléveis.


Tento mover as peças

Mas o rei está no chão do tabuleiro.


Já sou eu o Cristo que condena.
À guisa de morrer pela humanidade já a matei por mim.

Sou um prato reluzente e límpido entregue nas mãos de um esfomeado.

VAZIO

Toda a metafísica e a semiótica do que poderia ser...

Mas jamais será.


E só o que me incomoda é a presença da ausência


Sempre

E pra sempre.


Ainda que o pra sempre, sempre acabe.

E se torne ausência.


Sempre presente.




Ângelo Pinheiro

domingo, 1 de novembro de 2009

Ecologicamente...correto???

Bom, lá vou eu, me aventurando por um tema polêmico, sobre o qual fui inclusive advertido a não falar, pois por se tratar de um tema delicado eu podia ser entendido de forma incorreta. Ok, ok. Lá vou eu, de qualquer forma.



Continho (Anti)Ecológico

Estava eu um dia desses a abrir meus e-mails, despreocupadamente quando me deparo novamente com um e-mail(spam?) sobre a proteção dos golfinhos que são massacrados nas ilhas faroé(faroese islands, na Dinamarca). Não dei lá muita importância ao e-mail, como a todos os spams que recebo diariamente. Antes de fechar o e-mail, me impressionou uma lista de - ACRDDITEM - 1438 assinaturas virtuais, de pessoas de toda a parte do mundo. Apesar de suspeitar que uns 300 podem ter sido criados pelo originador do spam com a intenção de dar-lhe credibilidade, não deixei de me espantar com a força do e-mail. Continuei a faxina dos meus e-mails, passando por crianças perdidas que garantem ser filho do sobrinho de um colega, fotos de uma garota nua, que garantem ser de uma universitária da turma de medicina de 2009 na USP(mas tenho certeza de que já a vi em 2001 cursando fono na UFGV ou talvez em 2003 cursando psicologia na UEFS) até que cheguei finalmente ao e-mail que eu buscava. Um grande amigo tinha acabado de voltar do canadá e mandara o seu endereço a um seleto grupo de ex-colegas de colégio para uma reunião na sua casa. Ao localizar o e-mail, notei imediatamente que tinha também sido ele a me mandar o e-mail dos golfinhos na ilha lá da dinamarca. Por fim, ignorei o fato coincidente e segui ao encontro dos meus amigos.

Ao chegar lá, lembrei-me de como esse ex-colega era rico. Tratava-se de um daqueles prédios de 5 suítes, 1 apartamento por andar, cada um com uma varanda na qual caberiam o meu apartamento e o meu carro com uma certa folga. Ao notar essa disparidade, lembrei-me também que ele não era tão meu amigo assim. Sempre foi muito pretensioso, prepotente e esnobe. Impressionante como a ausência faz com que as pessoas nos pareçam mais nobres e amigáveis, isso, claro, sem contar a morte, que faz com que migrem de rematados canalhas a pessoas dignas de canonização com a velocidade de uma bala(ok, o trocadilho foi cruel).
Senti um forte impulso de ir embora, em especial quando vi um casal de mendigos que dormia à porta do prédio. A menina - a chamo de menina, pois aparentava ter no máximo 17 anos, o que, subtraindo-se os anos que o desgaste de uma vida nas ruas dá ao ser humano, deduzo que estava ela na casa dos quinze - apesar da tenra idade estava grávida, abraçada a um homem, supostamente o pai da criança ao menos para mim e talvez também para ele(quem sabe também para ela), encolhendo-se de frio embaixo de uma fina camada de jornais usados agrupados à guisa de uma manta.

Não tive coragem de subir imediatamente, na verdade a imagem dos mendigos nadando em uma gritante pobreza, era demais pra que eu aguentasse uma festa pomposa em meio ao esnobismo do recém-chegado ex-colega e ex-grande amigo. Telefonei avisando que não poderia ir, no que ele imediatamente me disse que não me preocupasse. Que mais tarde iriam todos a uma boate e se eu pudesse aparecer seria legal. Ok, disse eu e me esgueirei para o bar mais próximo. Uma cerveja, um cigarro e um pouco de silêncio eram tudo o que eu precisava para pensar um pouco na vida.
Sentei-me à mesa de um bar bastante próximo ao local do "crime" - obviamente enquanto "crime" refiro-me à pomposa festa dada na cobertura de um prédio onde vivia a família rica e tradicional do meu ex-colega e ex-grande amigo, na mesma rua onde reside a desconhecida e pobre família(?) de mendigos - na verdade escolhi esse bar pois queria continuar analisando as duas realidades, tristemente juntas. Queria ver a família dos mendigo e ao mesmo tempo saber quem entrava e saia da festa.
Reconheci alguns rostos, que chegavam em carros dando sinal de luz para o porteiro e soando os seus alarmes, fazendo assim com que o inevitavelmente ruim sono do casal de mendigos fosse perturbado vezes pelos sinais de luz e vezes pelo som dos alarmes.
Alguns davam-lhes moedas e notas de pequeno valor antes de entrar para a festa.
Comecei a pensar então, como a distância tem um poder grande poder de movimentar emoções. É praxe que perdoemos erros cometidos por pessoas que passamos anos sem ver, que estas nos pareçam mais caras e mais adoráveis. Isso sem mencionar os mortos aos quais temos quase uma obrigação moral de adorar, mesmo que tenhamos os visto poucas vezes e mal falado com eles. A distância, sem dúvida traz à tona uma grande carga de emoções. Os problemas distantes são sempre os mais fáceis de solucionar, já que temos sobre eles apenas a visão dogmática e panfletária do "certo e do errado", uma prática maniqueísta que nos deixa a uma distância segura o suficiente para julgar o desconhecido.

Tomei mais algumas cervejas enquanto observava o prédio de luxo. Reacendí na minha mente o fato de que fora ele(o rico ex-colega e ex-grande amigo) a mandar o e-mail das baleias piloto nas ilhas faroé. E comecei um jogo de ligar os pontos que segui fazendo do momento que paguei a conta até o momento em que fui deitar.

Ao chegar em casa, abri novamente os meus e-mails e notei que não apenas o dos golfinhos(que descobri serem baleias-piloto) como dois de crianças desaparecidas, um ensinando que não se pode fumar cigarro ao encher o tanque do combustível e o da universitária nua(sendo esse último irrelevante) haviam sido mandados pelo rico ex-colega e ex-grande amigo. Claro. Era a maneira de se sentir mais humano. Tratando de encabeçar listas de problemas que nos são completamente distantes. Fazer a nossa parte em relação à humanidade, à natureza, ao mundo, enfim.

Mais tarde, entre pesquisas na internet, descobri que a tradição de matança anual das baleias-piloto nas ilhas faroé começaram no ano de 1584, quando após um inverno EXTREMAMENTE frio houveram diversas baixas entre os habitantes da ilha e os mesmos decidiram que se encurralassem as baleias em um local propício, poderiam matar imensos cardumes(se é que pode existir um "cardume de mamíferos") de baleias-piloto, providenciando carne para o alimento e óleo para alimento, combustível que afastava o frio e outras coisas. Soube também que o número de mortes chega a no máximo 0.01 da população de baleias-piloto ao ano, o que é considerado "sustentável" até pelas instituições de proteção a baleias.

Por fim, enchi meu saco de toda essa pesquisa e já estava me preparando para dormir quando toca o meu celular. era o ex-colega e ex-grande amigo rico. Estavam na porta da boate onde eles pretendiam alongar a festa de reencontro e ele, naturalmente, pagaria tudo.
Neguei. já estava suficientemente bêbado e precisava dormir.

Por um minuto desejei que eles estivessem também suficientemente bêbados ou ao menos tivessem moedas e notas de pequeno valor suficientes para os mendigos na porta da boate. pior que a ressaca física é a ressaca moral.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

As sandálias


Boa tarde.

Peço desculpas pela minha ausência nessa semana. Estou ensaiando uma mostra cênica que será apresentada na sexta, sábado e domingo, o que tem me afastado um pouco da blogosfera. Na segunda-feira, devo fazer visitas mais freqüentes aos blogs amigos e retomar a atividade normal.

Por enquanto, brindo-os com mais um conto:


A vida e o futebol.

Era um dia frio na cidade.

Engraçado. Aqui nunca faz frio. Pelo contrário, é sempre um calor infernal que faz com que as camisas empapem de suor em poucos segundos, deixando os meninos agitados, sem camisa de um lado para o outro e as meninas mais quietas. Sentadinhas, assistindo os meninos brincarem e brincando de bonecas. Uma típica visão da infância tropical.

Eu jogava bola sempre.Apesar de péssimo jogador, o que fazia com que me colocassem na posição de defesa ou goleiro. Eu tinha 9 anos de idade e não me importava se jogava bem ou mal. Só queria me divertir. Mas naquele dia estava frio. Muito vento. Eu andava com os meninos da favela, pois no condomínio onde eu residia não havia meninos suficientes para compor sequer um time de futebol. Eles sempre eram os que jogavam melhor. Como se a vida deles dependesse daquilo. A garra com que corriam atrás da bola, evitando que ela sumisse pela linha lateral(que era definida por nós mesmos) era de se admirar. Alguns meninos do condomínio jogavam bem, mas não tinham aquela gana e determinação atrás da bola. Não pareciam depender da bola, como os meninos da favela. Naquela época eu não tinha a menor noção da vida que levavam, das dificuldades que passavam. Eram apenas meninos que moravam na favela próxima e que desciam para jogar bola no nosso condomínio, que tinha um campinho até razoável.

Mas nesse dia o vento sugeria aos meninos outros tipos de brincadeira. Eu, como já havia feito amizade verdadeira com muitos deles, fui convidado a empinar pipa com eles. Na minha rua havia um prédio abandonado. Mais tarde soube que as obras do prédio haviam sido embargadas por motivo de morte do dono da construtora, o que resultou numa batalha judicial entre os filhos, interrompendo a construção. Somente mais tarde também descobri que aquele prédio abandonado servia de abrigo para mendigos, esconderijo para criminosos, ambiente para partilha e roubos e refúgio para uso de diversos tipos de droga. Até então, era apenas um lugar onde se pegava um bom vento para empinar pipa.

Entramos no prédio. Pelo chão eu enxergava vestígios de passagem humana, o que fazia parecer uma expedição arqueológica. Pratos sujos de algo que não era comida. O fundo preto como se houvesse sido queimado, ao lado jaziam colheres igualmente escuras, giletes e velas. Instintivamente, como a criança sempre busca se aproximar do novo, me aventurei em um desses nichos.

- ô rapaz, não mexe nisso não. É o lugar dos sacizeiros, se eles sabem que você mexeu, te dão um tiro.

- E pra que é esse prato?

- Meu pai me falou que se eu visse prato, nunca mexesse, ou é macumba ou é pra cheirar.

Assustado saí dali quase correndo, num passo rápido. Os outros, apesar de saberem do que se tratava, não tinham medo e ralharam imediatamente comigo:

- Ta com medo, barão? Deixe de ser puta e vamos subir.

Subimos pelas escadas, sujas. Nos cantos se via a merda seca dos mendigos, paredes queimadas pelo mijo. Expostos ao sol, os desenhos de urina na parede queimavam, dando um tom amarelado aos tijolos. O cheiro de merda seca e de merda fresca emepesteavam o local. Seguimos. Novos nichos de uso de droga e partilha de roubo se revelavam à medida que subíamos os degraus. Carteiras reviradas e abandonadas, documentos de vítimas, carteiras de identidade, cpf, bijuterias sem valor, sapatos velhos. Tudo que era descartado dos furtos por serem de pouco valor.

Um dos meninos viu um par de sandálias e foi correndo na direção delas.

- Ta quase novo. Alguém deve ter roubado sapatos melhores e deixou elas aqui pra sair usando.

- Porra. Não pega nisso não. Nem dá no seu pé. – Gritei assustado com aquela nova realidade que me era revelada pouco a pouco.

- Não, mas dá no pé do meu pai. Vou dar pra ele.

Mas quando ele se aproximou para pegaras sandálias – que estavam na entrada do que seria um dos quartos da obra abandonada – fez uma cara de espanto. A boca se abria como se tivesse visto um fantasma e o carretel de linha caiu de sua mão.

De repente a sua expressão se transformou e ele deu um sorriso, como quem tinha feito uma descoberta.

- Galera!! Olha pra isso daqui. – Falou com expressão de corajoso. Parecia um verdadeiro explorador descobrindo algo que valia a pena ser observado por todos. Algo inusitado. Novo.

À medida que nos aproximávamos, crescia um cheiro de podre. Um cheiro que eu só havia sentido quando visitei um matadouro de gado na cidade de Cachoeira.

Nos aproximamos e o cheiro de putrefação crescia cada vez mais. Eu andava devagar, assustado, ao passo que os outros iam sem medo algum.

Olhei de longe. Não me atrevia a me aproximar mais. E lá estava ele. Amarrado com fios elétricos. Pés juntos com as mãos, como se amarram porcos, ovelhas e outros animais para vender em feiras. Mas não era um porco. Era um ser humano. O peito nu coberto com uma grossa camada de sangue coagulado, com alguns pontos mais escuros, quase negor, denunciando onde haviam sido efetuados os disparos. O rosto era só metade. Amassado por uma pedra. Um paralelepípedo que estava ao lado de fragmentos de crânio, sangue, muito sangue e massa encefálica. Fiquei paralisado com a cena. A primeira visão que tive da morte.

- Devia ser caguete. – Falou um deles, nem lembro qual.

- Caguete de que? – Perguntei ainda imóvel. Olhos vidrados. Quase tão vidrados quanto os do cadáver em nossa frente.

- Caguete da polícia. Participa das viagens e depois cagueta pra não ir preso. Tem que morrer mesmo. Não é sujeito homem.

- E agora? O que a gente faz?

- Vamo empinar pipa, no alto do prédio. – Falou enquanto pegava no chão o carretel de linha e as sandálias.

Saí correndo da obra abandonada. Fugindo da morte pela primeira vez.

A naturalidade com que eles encararam aquela cena, que para mim foi estarrecedora me fez pensar durante dias. Pensava que eu era mesmo um covarde. Devia ter ignorado o morto e subido pra empinar pipa. Me perguntava se fiz o certo. Se iam achar que eu era um medroso e não iam mais querer ser meus amigos. Pensei isso durante dias e dias, até que ouvi me chamarem na janela.

- Ô barão. Vamos jogar bola?

- Vamos sim. – Desci, feliz por não ser considerado um covarde. Feliz por ainda merecer a amizade deles, apesar de ter fugido.

- Porra, você não devia ter ido embora naquele dia. Cortei a linha de todo mundo, eu tava o cão com aquele vento.

Ninguém comentou a visão do morto. Nunca.

E eles jogavam bola. Firmes. Durões. Como se a vida deles dependesse daquilo.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

A vida imita a arte e a arte imita a vida.



















Caros,

Hoje, sob fortes influência Chaplinianas e Shakespeareanas, escrevi um poema.

Gostaria da opinião de vocês, especialmente dos poetas que seguem o meu blog, a respeito da mesma.

Sem mais delongas, segue a poesia.


Vida em um ato.

Silêncio! Eu estou em cena.

O foco é meu.

Luzes, holofotes

Tudo voltado para mim.


É a minha grande chance

O meu momento

Contraceno apenas com uma pessoa

O resto não me interessa

O foco é meu

Meu monólogo

Minha cena


O espetáculo prossegue e outros atores surgem da coxia

Contraceno

O foco é meu

O palco é todo meu

Sinto que todos vieram pra ME assistir

O FOCO É MEU!!!


Minha personagem ganha características diferenciadas.

Diferentes do que eu quis

Diferentes do que eu imaginei

Minha personagem é cunhada pelas contracenas obrigatórias

E toma uma forma que eu não conhecia até então


À medida que a cena prossegue

As marcações aparecem

Mas o diretor é etéreo, invisível

E eu ignoro as marcações


Não tenho roteiro

Meu grande monólogo agora se torna uma peça

Contraceno desejando ou não

O show tem que continuar


Por desrespeitar as marcações, erro

Perco as deixas

Falo em momentos errados

Mas a cena continua

Dividir o foco é cada vez mais necessário

Mas continua sendo muito difícil

O foco já não é só meu


Jogos de cena

Improvisações necessárias que não aprendi a fazer

Por achar que o foco era só meu

E quando noto que não,

Já não contraceno como os outros

E minha fé cênica vai embora


Minha energia cai

Não consigo mais tomar o foco

Me encontro no ostracismo

Minha impostação vocal já não alcança as pessoas da primeira fila

Em um espetáculo que já foi só meu

Meu monólogo

Meu foco


Está perto do fim

Os aplausos não serão pra mim,

Se é que haverão aplausos,

Não creio que os ouvirei.


Só então me percebo ator

As marcações agora são claras

O diretor me fita com olhos de repreensão

Ainda não o vejo, e já não sei se o verei


Eu

Ator

Eu

Artífice de mim mesmo



Fim do primeiro ato.



"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso cante, chore, dance, ria e viva intensamente; antes que a cortina se feche e a peça acabe sem aplausos" Charlie Chaplin

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Aqui me tens de regresso.


Caros amigos e seguidores do meu blog,

Meu atual envolvimento com o teatro está me tomando um tempo inacreditável, por isso fiquei realmente um bom tempo sem dar as caras, porém, estou de volta.

Queria pedir desculpas a vocês, mas anuncio que estou REALMENTE de volta e as atualizações voltarão a ser constantes.

Para a minha volta, segue um conto. Espero que gostem.

Abraços


Sabores

Acordei. Tive um sonho estranho sobre amizade. Na verdade é uma merda pra mim sonhar com amizade. No sonho eu reencontrava com os velhos amigos da época de colégio e das brincadeiras de infância. Lembrávamos da época em que brincávamos de esconder na rua, completamente despreocupados com o fato de estarmos na entrada de uma enorme favela. Uma das mais perigosas da cidade(naquela época ainda havia distinção entre uma favela e outra, hoje é tudo igualmente perigoso e fudido).

Nossa única preocupação era encontrar um bom esconderijo e tentar salvar todos no final do jogo. Eu tinha um ótimo esconderijo entre as latas do lixo. Eu ainda tinha nesses dias um forte instinto de preservação minha e dos outros. Não me incomodava o cheiro do lixo e eu ainda tinha esperanças de poder salvar alguém. Enquanto o pegador se esgueirava entre os matos que cresciam vigorosos e enormes à beira dos esgotos eu esperava a minha oportunidade de surgir do meio do lixo e gritar “1, 2, 3 SALVE TODOS”. E esse era eu, INTEIRO. Forte. Surgindo do lixo e salvando todos os meus amigos. Bons tempos.

No sonho que tive, todos ainda tínhamos a mesma energia. Conservávamos aquela força, aquele entusiasmo de quando brincávamos entre o mato crescente e os esgotos. Quando eles, perambulando capturados entre o mato, aguardavam que eu, tal e qual um herói, surgisse do lixo e salvasse todos. Mas esses amigos, na verdade, se tornaram em sua grande maioria ladrões de galinha, viciados em crack ou são apenas representados por um pedaço de mármore e uma coroa de flores secas e despetaladas no cemitério do campo-santo. Por isso, sempre que os encontro – Os sobreviventes, claro – é uma coisa estéril. Uma relação de desconfiança e ódio, onde de um lado alguém tem raiva de você por ter conseguido se tornar alguma coisa no meio de toda aquela merda e de outro lado você desconfia que aquele filho da puta vai te roubar ou te passar a perna na primeira oportunidade em que tiver. Nessas ocasiões até lembramos da brincadeira de esconde-esconde, mas lembramos com muito mais força do cheiro azedo do lixo, do fedor de fermentação do esgoto e do cheiro de merda que brotava entre o matagal. Ninguém se lembra do herói surgindo entre o lixo e eu já não quero salvar mais ninguém além de mim, fugindo o mais rápido que posso do meio desses filhos da puta.

O que é mais foda é que desperto desse sonho com todos os sabores da infância na ponta da língua e olho pra mim. Me enxergo hoje e todos os sabores ganham imediatamente o gosto metálico e inerte do eu atual.

Imediatamente me lembro de quando eu tive gengivite. Na verdade era gengivite ulcerativa necrosante aguda(GUNA) uma doença que só tem quem é imunodepressivo(como os aidéticos) ou quem se trata realmente muito mal.

Eu estava passando por um processo de franca auto-destruição, mas não me sentia mal. Estava num momento de conciência sublime. E quando atingimos esses estados de consciência e notamos a grande merda que o ser humano é, o ato mais digno que podemos ter é cometer uma auto-destruição semi-consciente. Eu bebia de segunda a segunda e fumava uns dois maços de cigarro por dia. Devido às fortes dores de cabeça da ressaca, me entupia de analgésicos toda manhã e naturalmente os remédios me deixavam ainda mais doente.

Minha imunidade baixou e eu conheci a GUNA. Meus dentes começavam a ficar expostos cada dia mais, à medida que as gengivas eram corroídas pela doença, mas eu não me sentia mal, pelo contrário, a exposição dos dentes me deixava com uma cara de mau, e eu adorava isso. Infelizmente as dores excruciantes acompanhavam a estética causada pela corrosão da gengiva numa progressão igualmente veloz.

Não agüentando mais fui ao dentista que me passou uma merda azul pra bochechar. Logo me avisou que entre os riscos que eu corria estavam o de ficar com os dentes escurecidos ou até azulados, a perda de apetite e ardência e formigamento nos lábios durante o tratamento. Fora isso havia também a certeza da perda do paladar, que poderia ser permanente ou durar apenas o tempo do tratamento. EXCELENTE, doutor, troquei um remédio que me deixa doente por outro.

Comecei o tratamento que me livraria da gengivite e todas as manhãs e noites eu bochechava com aquela merda azul.

Progressivamente fui perdendo o paladar. Um dia notei um sabor amargo enquanto comia uma pizza. Reclamei, disse que a pizza daquele restaurante era uma bosta e comecei a me exaltar. O garçom veio de lá correndo, perguntando se eu queria meu dinheiro de volta ou outra pizza, mas que pelo amor de deus calasse a boca porque estava atrapalhando o movimento do restaurante. Mandei ele à merda, peguei minhas coisas, um refrigerante em lata que eu ainda nem tinha aberto e caí fora.

Abri o refrigerante afim de enxaguar a boca e tirar o gosto amargo da pizza. Assim que coloquei o refrigerante na boca, senti o mesmo sabor metálico da pizza. Estava acontecendo. Já podia até dar adeus aos sabores da vida. Passando pela rua, vi um mendigo. Ele estendia a mão as que passavam e por vezes recebia algumas moedas que restavam desprezadas no fundo de alguma bolsa, outras vezes recebia um grito, um movimento de repulsa ou até mesmo um chega pra lá de alguns mais enfurecidos pelo seu mau-cheiro ou simplesmente pelo fato de ele existir tão pobre e sujo, naturalmente recriminando o fato de serem bem-sucedidos na vida.Aos dois tipos de tratamento o mendigo reagia de forma idêntica. Apenas se encolhia no seu cantinho, colocando-se na posição de “não reagente”. Para ele não havia bom nem ruim.

Segui pela rua dando pouca importância ao fato e com o passar dos dias o permanente sabor metálico do nada continuava a me perseguir. Pizza, feijão, carne, arroz, salmão. Qualquer merda que eu comesse era a mesma coisa. Não havia mais sabor, apenas o hábito de mastigar.

Nunca tinha notado que o ato da mastigação era tão nojento. Você mastiga algo até que se torne uma coisa mole e gosmenta. E engole. Com o tempo, já não fazia a menor diferença o que eu comesse. A comida era apenas textura.

Andando novamente pelas ruas, vi o mesmo mendigo que havia visto dias atrás. Dessa vez ele me chama uma atenção de forma especial. Continua sendo enxotado com a mesma naturalidade com que recebe ajuda. Não há diferença entre o escárnio e a esmola. É sempre uma relação estéril e fria. Sem alegria e sem tristeza. Sem sabor.

A poucos metros dele, há uma barraca de cachorro quente. Compro dois e entrego um a ele. Ele me fita com os olhos com um esboço triste do que seria um sorriso, mas não ousa agradecer. Sigo o meu caminho e dou uma mordida no meu cachorro quente. Mastigo, e enquanto ele se mistura com a minha saliva, formando um bolo alimentar espesso. Sinto lembranças de algo que eu gostava. Os pedaços de tomate, a forma com que o molho ajuda a hidratar a massa do cachorro quente. Mas logo vem o gosto metálico e me tira todas as esperanças. MERDA!


quinta-feira, 30 de abril de 2009

A sagrada miséria





Ainda era cedo quando acordei pra estudar. Os primeiros raios de sol raiavam timidamente pela janela e incidiam severamente sobre o livro de direito tributário. Eram as primeiras ordens do dia para o estudo. Passar não era opção. Estudar, menos ainda.

Do outro lado da rua estava Carlão. Lata de cerveja na mão, cigarro nervosamente tragado um atrás do outro. Aguardava o horário que supunha que eu acordaria para lamentar as suas misérias. Nem todos querem ouvir nossas misérias, menos ainda suportá-las. Mas eu era tudo que ele tinha.

- Porra, 8 da manhã, ele já deve ter acordado. - Pensou Carlão rumando em direção ao meu apartamento.
- Ô RAPAZ....ACOOOORDA. - Exclamava Carlão, no topo de sua sutileza.
- Já tô acordado, meu velho, entra aí, mas fala rápido, tô estudando.
- Cara, fudeu! Vou ser demitido.
- Porra Carlão, como assim?
- Fiquei sabendo, preciso conversar. - Jamais admitiria precisar de apoio, isso era o mais próximo que ele podia chegar.
- Tá, vamos lá, mas é rápido, preciso voltar pros estudos.

Saímos em direção ao primeiro bar, onde Carlão puxou uma cadeira pra ele e outra pra mim.
- Senta aí que eu te explico.
- Velho, você sabe que eu não vou beber, preciso passar nesse concurso.
- Você vai passar, tudo que tem feito é estudar. - Exclamou Carlão, numa segurança que só temos quando o problema não é nosso. Ah, como é fácil lidar com a miséria alheia.
- Um monte de pessoas só faz estudar há anos meu velho, não é tão certo assim que eu vou passar.
- Posso falar do meu problema?
- Claro, claro, desculpa.
- Então. Vou ser despedido.
- Mas há quantos anos você está na empresa? - Perguntei, com a mesma segurança que temos quando o problema não é nosso.
- 2 anos. Mas não é esse o caso. Tenho problema de coluna. Vou entrar com atestado médico, pedir licença, quando eu sair da licença recebo meus direitos, meus benefícios.
- Caralho, Carlão, mas isso é fraude.
- Fraude o que, porra? Eu pago INSS todo ano, essa merda não é pra me valer de alguma coisa?
Nesse momento, entra um mendigo. Os pés coalhados de feridas. As mãos trêmulas. Um olhar confuso, pupilas dilatadas ao extremo, talvez pelo medo, talvez pelo abuso de drogas, mais provavelmente pelos dois, um em decorrência do outro independentemente da ordem. Apesar do olhar expressar experiência, aparentava não mais que dezoito anos.
- Dá um trocado, tio? - Pediu voltado pra Carlão, com súbito olhar choroso em troca do olhar confuso, porém mantendo as pupilas dilatadas e o tremos nas mãos.
- Toma aí, meu bom. - Disse Carlão, estendendo uma nota de dois reais. O moleque se distanciou.
- Caralho, Carlão, não tá vendo que ele é um viciado?
- E será que ele não tem motivo pra ser? O cara tá na merda, deixa ele pedir pra não morrer de fome.
- Fome? Ele vai é fumar crack. Aquele menino que ronda lá na rua sim. Não tem uma perna, tem três filhos. Há quem diga que ele fuma crack, mas quando pede dinheiro...a ele eu dou.
- E esse você acha que não come?
- Bom, esquece essa porra, e adianta o assunto, preciso estudar.
- Meu velho, eu vou me encostar pelo INSS, preciso da grana.
- Precisa da grana pra que, Carlão? Pagar seu carro, pagar sua cerveja? Isso é fraude do fisco, porra. Se ao menos você não pudesse trabalhar, não pudesse se mexer, sei lá.
- Tá, tá!! Você tá muito enfiado nesses estudos seus. Meu primo também tá estudando pra essa merda e não tá assim, ficando louco.
- É, deve ser porque ele tem emprego em um turno, tem renda e não tem filho. Fora que ele tem a esposa pra ajudar ele. Porra Carlão, vê se me entende. - Dito isso, me levantei. Na hora da raiva nem pensei nos problema do Carlão, tava muito puto. Precisava estudar mais três horas de tributário pra começar a estudar as mudanças de lei. O Carlão virou pro outro lado e me mandou tomar no cú. Notei a falta de ânimo da assertiva, logo essa frase que el falava com tanto orgulho "Vá tomar no cú". O orgulho dele impediu de demosntrar tristeza e o meu de demonstrar que me importava.

Andando pela rua, até chegar ao apartamento, escutei duas mulheres conversando:

- Pois é, minha filha ela encontrou ele na cama com outra.
- Mais bonita que ela?
- Muito mais.
- E foi por amor?
- Com certeza. Ele ainda colocou ela pra fora de casa e deitou a outra na cama na mesma hora.
- Mas eles tinham filhos?
- Graças a Deus não.
- Pois bem, minha filha. Pena eu sinto é da minha comadre que foi igualzinha a essa daí, mas foi posta pra fora foi junto com os três filhos.

Abri a porta do prédio com aquelas palavras na mente. Então pensei:Como é difícil ser miserável o suficiente para que mereçamos compaixão. É preciso que nos esmeremos muito em ser miseráveis e que sejamos supinamente derrotados, caso contrário, assim como num concurso tomam a nossa vaga.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Pequena cena


A princípio, gostaria de pedir desculpas pela enorme demora entre uma postagem e outra. Isso se deu por minha vida estar passando por muitas loucuras. Também, pelo fato de que estou de férias. Nesse início de férias me dediquei a meus projetos pessoais e, apesar do blog ser um deles, acabei por deixar o blog meio de lado. Além disso, nas férias sempre ficamos meio lentos, né?

Enfim, resolvi agora postar uma pequena cena que me veio à cabeça, influenciado por diversas leituras de férias.  Lá vai.



Soluções


Senhor de meia idade: (demonstrando certo desconforto por estar alí) Boa tarde, gostaria de uma solução pra a minha vida.

Atendente: Senhor, não sei se ficou claro para o senhor, mas isso daqui é prostíbulo.

Senhor de meia idade: Sim, justamente. É que meu problema é de cunho sexual e não achei que deveria falar com um psicanalista.

Atendente: Mas senhor, não é justamente de problemas de cunho sexual que os psicanalistas mais tratam?

Senhor de meia idade: Bom, deixe-me apresentar. Meu nome é Stan e eu sou justamente um psicanalista. Tenho medo de buscar outro psicanalista. de repente eu viraria uma piada interna, sabe? Essa conversa de ética profissional é balela pura.

Atendente: Espera um pouco, quer dizer que em rodas de poker, em bate-papo de bar, vocês falam de seus pacientes?

Stan: Certamente.

Atedente: Então muitos de vocês devem saber que eu sou filha de família rica e trabalho em prostíbulo por não me sentir aceita pela minha família e preferir ser vista com putas a ser vista com os meus pais?

Stan: Sarah? Sarah, paciente do Claus, não é isso?

Sarah: Puta que pariu. Qual é o problema de vocês?

Stan: O deles eu não sei, mas o meu é que não consigo ter uma ereção com mulher alguma. Tenho a impressão de que já tive todas.

Sarah: Mas o senhor já teve muitas?

Stan: São todas parecidas, isso facilita o meu problema.

(Entra um homem de uns 28 anos, aprentemente bêbado)

Rapaz: Sarah, tem alguma puta nova hoje?

Sarah: Claro que sim, Carlão, aguarde um minuto que a chamarei.

Stan: (para Sarah) Ah, a juventude. Ele certamente não tem o meu problema.

Sarah: Pelo contrário, talvez ele tenha a sua cura. Porque não fala com ele?

Stan: (parecendo confuso) Acha que ele poderá me ajudar?

Sarah: Está aqui todo dia, sempre em busca de novas moças, talvez te ajude sim.

Stan: (Aproximando-se do rapaz) Boa tarde, meu jovem.

Carlão: (Gritando com Sarah) Porra, Sarah, quantas vezes preciso repetir que não sou viado. E esse ainda é careca, que decadência, ein?

Stan: Não, não. Deixe-me explicar. Eu sou um psicanalista que aparentemente enjoei das mulheres.

Carlão: Cara, você não entendeu quando eu disse que não sou viado?

Stan: Não é isso. A Sarah me disse que talvez pudesse me ajudar, já que você vem aqui todos os dias em busca de novas mulheres e parece jamais enjoar delas.

Carlão: Ok, meu velho. Enquanto a puta não vem, vamos brincar de psicólogo.
Pra começar, porque você acha que enjoou das mulheres?

Stan: Sinto como se já tivesse tido todas.

Carlão: E teve?

Stan: Algumas delas, mas são muito parecidas.

Carlão: Ok ok.  Vamos do princípio. Porque você come uma mulher?

Stan: Porque eu preciso de sexo?

Carlão: (em um pulo, como quem acabou de achar o problema) AHÁ! Aí está o primeiro erro.

Stan: E porque eu deveria comer uma mulher então?

Carlão: Porque você é homem. Isso é o que fazemos, mesmo que não precisemos.

Stan: Então eu devo fazer sexo contra a minha vontade? Apenas por ser homem? Com todas essas mulheres que parecem fabricadas em série?

Carlão: Meu senhor, presta atenção. O que você precisa mudar não é a mulher, é o seu comportamento.

Stan: (começando a entender, presta enorme atenção) Sim, sim, explique. Mudar como?

Carlão: Você está escolhendo como um consumidor. Quer algo que atenda a uma necessidade específica. Assim que essa necessidade for sanada, Puft, já era.

Stan: Hum. A grosso modo, entendo. Concordo, até. Como deveria...er...escolher, então?

Carlão: Como um colecionador. Os colecionadores jamais se cansam. Por que os colecionadores não escolhem pela função do produto. Eles não escolhem por precisar de . Eles escolhem pra satisfazer outro tipo de desejo.

Stan: Mas são muito parecidas.

Carlão: Mas não são iguais. Colecionadores têm peças diferentes apenas em pequenos detalhes.

Stan: E no caso de ser a mesma mulher?

Carlão: Nunca é a mesma mulher.(levantando o copo) Caso pense que seja, beba. Um gole a mais, um gole a menos, você tem uma mulher diferente.

Stan: (para Carlão) Ok.Ok. Obrigado de qualquer forma. (voltando-se para Sarah) Me vê uma garrafa de Red Label. E manda um abraço pro Claus, tá bom?

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Um outro conto.


Lá se vai mais um conto. Para os que simpatizam com o Carlão, ei-lo novamente. 
Aos que se identificam com o clássico Cafajeste, como a eterna personagem, alguns dizem que autobiográfica, de Jece Valadão, eis o romantismo de uma classe esquecida e abominada, sobretudo agora, em tempos da crescente e quase opressiva "liberdade feminina".



Sobre o dia em que Carlão morreu.

Chegava eu no trabalho, pontualmente às 08:00, talvez 07:55, quando me dão um aviso estranho. Muito estranho.
- O Carlão chegou cedo. Está te esperando na sua sala.
- Fala sério Selma. Quem morreu?
- A julgar pela cara, algum parente próximo.
Subi as escadarias numa empolgação preocupada. Muito diferente das minhas subidas regulares no mesmo horário. Tanto me empolguei que havia me esquecido de bater o ponto. Retorno, puxo o cartão de ponto, o coloco na máquina e olho o cartão do Carlão. 07:43. Há algo de errado, muito errado.
- Carlão! O que é que há, meu irmão? - Pergunto ao entrar na sala em um rompante.
- Uma merda! Uma merda, só isso. - Me responde ele, com um cigarro apagado no canto da boca.
- Ânimo, rapaz. Quem morreu? - Pergunto esboçando um sorriso nervoso e já temendo a resposta.
- Eu. Assassinado por uma mulher. - responde Carlão, desolado. Isqueiro na mão, mas sem forças e nem decisão para acender o cigarro. - O pior? Fui eu o mandante do crime.
- Porra, esmiuça isso daí, Carlão! Esmiuça.
- Vamos sair daqui. Não quero ser a piadinha suicída do escritório. - Falou Carlão, se levantando e pairando ante mim. Tal e qual o fantasma dele mesmo.

Seguimos para a praça em frente ao trabalho. O cigarro ainda no canto da boca. O filtro já molhado. O isqueiro ainda na mão recalcitrante. Fato, jamais havia visto o Carlão tão moribundo. Lembro que no enterro do próprio pai ele voltou-se pra mim, olhos marejados de choro e cigarro no bico, porém aceso, e disse:
 - Vamos adiantar esse processo. Chore tudo o que você tem pra chorar e vamos sair pra tomar uma. Amacia a alma e o coroa com certeza não ia me querer morto ao lado dele.
Esse era o Carlão. Não esse monte de carne mole que estava à minha frente, de gravata. O Carlão de gravata.

- Escuta. Essa é boa. Você lembra da Clarinha?
- Claro, claro. A que você disse que tava comendo.
- Isso, essa. A assassina. - Falou Carlão, vivo pela primeira vez no dia. E acendeu o cigarro. - Não costumo me envolver com esse tipo de mulher, e não devia ter me envolvido. Digo mais.
- Ah, mas a Clarinha é um doce, o que foi que houve?
- Justamente, porra. Experimente passar um dia inteiro bebendo e depois engolir um doce. Não dá. Desanda. No máximo um ovo de codorna e vá lá. Fiquei um dia com essa cobra. Dois, Três. No quarto dia ela me chamou pra dormir na casa dela. Eu fui. Era o começo da minha desgraça.
- Carlão, essa viadagem toda é porque você se apaixonou?
- Escuta, porra. Não tenta adivinhar. - Retrucou o Carlão, se levantando, definitivamente com vida.
- Tá, tá. Fala. 
- Ao quinto dia, senti algo estranho. Passei o dia querendo que ele terminasse. Mas não pra beber, pra encontrar com ela.
- Que bonito, Carlão. Uma alma por trás de tanta pedra, quem diria. - Falei sorrindo sarcásticamente.
- Alma essa que matamos juntos, presta atenção. Fui pra a casa dela novamente. E nos outros dias. Um casalzinho, uma merda de um casalzinho. Com um mês nesse semi-namoro com ares de casamento eu conheci uma amiga dela. A Juliana. Você conhece ela. Trabalha aqui do lado, na farmácia.
- Ahn? A sexy machine? Aquela que faz o pessoal entrar pra comprar aspirina e sair com remédio pro coração?
- ESSSA, ESSA MESMA!! Amiga de infância, calcula? Logo que ela entrou na casa estava trajando um vestidinho preto, mais colado no corpo do que a própria pele. Me olhou de cima a baixo. Escaneava meu corpo e lia toda essa tal alma que eu estava começando a construir. Tomamos dois ou três drinques e ela finalmente soltou a primeira palavra.
- Cal, tá parecendo que acertou ein. Esse tem cara de homem.
- Que é isso, Jú. Não cobiça o que é meu que é feio. - E riram. Mas risos loucos. Frenéticos. Numa espécie de piada que só elas eram capazes de entender.
- Caramba Carlos Santos, que loucura.
- Você não viu da missa um terço, aguarda. Quando ela saiu, a Clarinha veio pra mim e falou bem assim:
- Linda, né?
- Aham - Disfarcei o quanto pude. - bonita, é verdade.
- Não encosta nela, ein? Eu sei no que você tá pensando.
- O outro dia me foi um inferno. Passei o dia pensando no que ela me disse "eu sei no que você tá pensando". Nem eu sabia. Mas foi no sábado passado que se deu a desgraça. Meio dia, me liga a Clarinha. Me dizendo bem assim:
- Meu anjo, passa na casa da Jú e pega uns DVDS que deixei lá? Faz isso por mim? - E me explicou todo o endereço. Eu não podia dizer que não iria. Claro que fui. Quando cheguei lá, ela estava de shortinho de dormir e blusa de seda...camisolinha, porra, camisolinha.
- Caraca Carlão, que sinuca de bico. - Comentei empolgado com a história. 
- Vê só, tá no começo da merda. Ela me mandou entrar e procurar os dvds. abaixei-me no quarto dela. Isso mesmo, NO QUARTO DELA. e comecei a catar. Sabia os títulos, a Clarinha tinha me dito. Achei os três e quando me virei, prestes a sair, me deparo com a Juliana, deitada na cama de calcinha. SÓ DE CALCINHA. e ela me diz:
- Vem cá, tenho que ver se a Cal escolheu um homem de verdade dessa vez.
- Putaquiupariu Carlão! Que que tú fez?
- Olhei pra a cara dela, agradeci, fingi que nada demais estava acontecendo, virei as costas e fui embora. No outro dia pela manhã, me liga a Clarinha:
- Carlão, preciso te ver.
- Carlão? que que houve com "meu anjo"? - Perguntei sorrindo nervoso. - Peguei teus dvds.
- Estou sabendo, estou sabendo de tudo.
- Escuta, não sei o que ela te disse, mas não é verdade.
- Vem logo, Carlão, deixa de conversa. Aliás, vem não, vamos nos encontrar no barzinho, por favor. No junqueira, em frente ao meu apartamento.
- Lá chegando, ela chorava copiosamente. Um copo de cerveja na mão.
- Bonito, Carlão, bonito pra a minha cara.
- Clarinha, eu nem encostei nela. É tudo mentira.
- Mentira nada. Ela tava de roupinha de dormir e te mandou entrar pro quarto dela.
- Mas amor, eu fui embora, eu fui embora.
- Ela te mandou pegar os filmes, você pegou, demorou procurando. Ela estava de calcinha na cama te esperando.
- Clarinha, eu peguei os Dvds e fui embora.
- Que tipo de homem é você?? Que tipo de homem é você? Acha que é isso que eu quero pra mim? SEU FROUXO.

- Pera, pera, pera. Me perdi em algum lugar, não é possível. - Falei atarantado.
- Perdeu porra nenhuma. Quem se perdeu fui eu. Foi um crime em conjunto, meu amigo. Eu fui o mandante e elas me executaram. Ela levantou e foi embora.
- Caralho, Carlão. Nem sei o que te dizer. Deixa o trabalho de hoje pra lá, vamos tomar umas gelosas. 

Sentamos no bar. Abrimos a primeira cerveja às 08:40 da manhã. Lá pelo meio dia, bêbado, talvez sensibilizado pelas pancadass do fim de semana. Ele vira pra mim e fala:

- Ela nem quis os dvds, porra. Nem quis os dvds.

domingo, 5 de abril de 2009

Pausa para Agradecimentos


 







Bom,  estou oficialmente fazendo uma pausa destinada a agradecimentos, rasgação de seda e puxa-saquismo explícito mesmo.

Brincadeiras à parte, iniciei meu blog há pouco tempo, com a única intenção de não continuar perdendo textos e mais textos, da mesma forma que perdi inúmeros cordéis e poesias que escrevi na minha adolescência e fiquei muito feliz com a repercussão que meus textos acabaram ganhando.

Atualmente o meu blog foi laureado(sempre tive vontade de usar essa palavra) com dois selos, um dado pelo amigo Valdeir e outro pelo Vejablog.

Gostaria de falar um pouco a respeito de cada um deles.


Primeiramente o Selo dado pelo Vejablog, Senti-me muito honrado com a homenagem do amigo Dário Dutra que colocou o meu blog entre blogs e sites premiados no Brasil. Realmente fico sem palavras.

Em segundo lugar, mas obviamente não em grau de importância, fica o meu agradecimento ao amigo Valdeir, que me premiou com o selo "Esse blog é uma jóia". Gostaria antes de mais nada, de me desculpar com o Valdeir, pois não passarei adiante o selo, por assemelhar-se essa atitude a uma corrente de internet e não sou muito afeito a regras e ditames.
Enfim, isso não diminui em nada - até aumenta - a honra que senti em ser laureado(olha a palavra novamente) com esse selo. Aproveito esse espaço e faço minhas as suas palavras em seu mais recente comentário no meu blog: "Também estou feliz em ler seus textos. Há vida inteligente na blogosfera". Há sim e você é prova viva disso, bem como seu blog é prova virtual disso.

Como não vou dar selos a ninguém, gostaria aqui de parabenizar algumas pessoas, pela força e motivação que me deram nesses dias de blogueiro.

Gabriel Pinheiro(nepotismos à parte, bons textos): www.safenacultural.blogspot.com

Jamerson Silva, um grande vencedor que tive a sorte de conhecer nessa vida: www.coisasqueinquietam.blogspot.com

Sheila e seus ensinamentos acerca da psicologia e psicanálise: www.escribadodocio.blogspot.com

Valdeir, grande amigo blogueiro, muitos textos de excelente qualidade e muito conhecimento a respeito da blogosfera: www.ponderantes.blogspot.com

Robledo castro e seus belos e interessantes contos: www.palavrasinformais.blogspot.com
 
A todos outros parceiros da blogosfera cuja memória lenta e ocupada pode me fazer não lembrar dos endereços dos blogs, estão todos aí do lado e sintam-se igualmente homenageados
  --------->

Outras pessaos que eu não poderia deixar de agradecer:

Gustavo Ramalho, afinal de contas se não fosse a ajuda desse webdesigner, não conseguiria mexer em NADA do meu blog: www.s3design.com.br


E por último, não por ser menos importante, mas, em exato contrário, por ser a cereja do bolo, a mais importante de todas Candice, meu amor, a essa eu agradeço por simplesmente TUDO.


Agora, depois de tanta rasgação de seda, prometo um conto, Poema, cordel, crônica...algo assim pra amanhã, ok?

Grande abraço e novamente, MUITO OBRIGADO.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Encontro com a morte.


Bom, conforme vinha prometendo há(corretamente posicionado) algum tempo, segue mais um conto.

O Título originalmente seria "Encontro com a morte", por isso mantive-o no título da postagem, porém à medida que fui escrevendo, mudei para "Duas mortes".

Sem mais delongas, segue o conto. Espero que Gostem.



Duas mortes.

 

 

É quente.
Sinto o calor da mortalha que forra, abafado pelos
10 centímetros de pinho polido acima, abaixo e dos lados.

Não devia estar sentindo isso, mas sinto.

Sinto perfeitamente a movimentação do corpo ao primeiro tranco, resultante do acionamento da manivela que desce o caixão. Sinto a escuridão aumentar a cada palmo percorrido abaixo da terra. Ouço os primeiros punhados de terra jogados pelos parentes, amigos.

Jogados por mim.

 

Meu nome é Sandro Arnaldo Junior. Dr. Sandro Arnaldo Junior.
Neurocirurgião.

O nome, bem como a profissão, herdei do papai. Talento é genético, todos sabem disso.

 

Lembro de uma manhã. Estava com meus amigos, jogando bola. Sonhava em ser jogador de futebol. Diga-se de passagem, jogava muito bem. Meu pai da janela gritava e me chamava:

- Sandrinho! Entra meu filho, você é bom de bola, mas a faculdade de medicina é concorrida, tem que ter uma boa base.

- Ah pai, mas eu quero jogar bola. – Argumentei arfando.

- Como profissão?

- É, pode ser..euheuheuhe – respondi entre risadas e arfadas decorrentes do jogo.

- Mas eu sou o Dr. Sandro Arnaldo, não sou o Zico nem o Pelé.

- Ta booooooom. – Entrei pra casa, desejando no meu intimo ser filho do Pelé ou do Zico.

 

Passados anos de fervoroso estudo, entrei com facilidade na escola de medicina da UFBA, assim como meu pai. Ele era puro orgulho no dia. Ele era pura felicidade. Ele estava uns 20 anos mais novo.
Lembro perfeitamente de quando o Tio Guilherme chegou em casa, charuto na boca, cervejinha em lata na mão

- Parabéns, Sandro. Detonou no Vestibular, ein? – Gritou a todo pulmão.

- Muito obrigado, muito obrigado. – Respondeu meu pai, enquanto eu ainda tomava fôlego para falar.

- Sandrinho, como foi o Vestibular, me conta? – deitando a lata à mesa, perguntou o Tio Guilherme.

- Coisa boba, com todo o estudo, foi fácil. Não foi filhão? – Novamente interrompeu o papai, antes que eu conseguisse responder. Ao que me limitei a assentir com a cabeça.

- Pai, vou sair. Tomar umas com meus amigos, comemorar.

- Vai sim, filhão, vai sim. Ficarei daqui tomando umas também, em comemoração. – Respondeu vigorosamente, enquanto servia um copo de whisky pra ele e um pro meu tio.

 

Aposto que ele ficou mais bêbado do que eu. Quando voltei pra casa, meu pai estava deitado no banquinho do jardim da entrada. O copo na mão derramara em uma possível queda, causada certamente pela embriaguez excessiva. Um cigarro pendia da boca, colado ao queixo, ainda apagado.

Arrastei-o pra dentro de casa, acordei a mamãe que se disse já exausta com toda a cena passada na noite, mas ainda assim deu-lhe um banho de roupa e tudo e o colocou na cama.

 

Era a perfeita imagem de um calouro.

 

A faculdade se passou com velocidade. Tudo era pra mim muito fácil, eu tinha as dicas que precisasse em casa e tinha toda a habilidade no sangue. Legado. Como uma herança. Como se sabe, a herança é algo que geralmente você ganha sem desejar. Algo que só se adquire ante a morte de alguém. De alguém que você ama muito.

 

Anos se passam e agora eu sou Doutor. Doutor Sandro Arnaldo Junior, neurocirurgião.

Dia duro no consultório, abro a porta de casa e encontro a minha mãe – sim, ainda moro com a minha família – aos prantos.

- Sandrinho, o seu pai está muito doente. – Sandrinho...como é bom ser Sandrinho pra alguém. Como é bom não ter um título legado de Dr. Ao menos uma vez.

- Ele ta no quarto, mãe?

- Vai ver ele, meu filho, é o coração, deve ser o coração. Vai, você é médico e vai saber melhor do que eu. – E assim, lá vou eu, novamente Dr. Sandro Arnaldo Junior.

Passo pela porta do quarto e sinto calor e frio ao mesmo tempo. Um temor terrível toma conta de mim. Temor de morte.

- Pai, o senhor está bem? – Pergunto já sabendo de antemão a resposta. Eu podia sentir o frio tomando conta do meu corpo. Podia sentir a dor no meu peito. Não, não estava bem.

- Filho. – Falou ele vacilante. A voz trêmula de quem já não tem tanto tempo. Desgastada. – eu...

 

Ele continuou falando, mas eu já não conseguia ouvir. A dor no peito aumentava. O estômago parecia que ia estourar. A dor aumentava, irradiando-se para o braço, descendo para o estômago. Tudo fica branco. Turvo e branco. Lesão tecidual isquêmica irreversível.

Ouço o ranger da madeira polida em atrito com as pequenas pedras e o cimento. Ouço o som dos esforços abafados dos parentes, gemidos e arfares ecoando no próprio peito ao levantarem a pesada tampa de cimento. Nesse momento, me vem à cabeça as palavras do meu pai. Aquelas mesmas que eu perdi no momento em que minha respiração ficava mais curta e a pressão do meu peito se transformava
em dor. Quando a náusea tomava conta do meu estômago empachado, ele dizia: - Eu já não me preocupo mais com a morte. Criei meu filho. Formei meu filho, você. Dr. Sandro Arnaldo Junior, neurocirurgião. Quero que você fique com meu consultório, com meus aparelhos, até com meus pacientes. A morte já não me causa medo algum.

 

Mas a mim causa. Sinto a escuridão se tornar plena. Colocam a tampa de cimento. Eu coloco a tampa de cimento. Abaixo dela, Sandrinho. Sepultado com todos os seus sonhos, com a sua bola. Acima dela, Dr. Sandro Arnaldo. Embora Junior, Neurocirurgião.

Ângelo Pinheiro



Qualquer semelhança com pessoas reais - ou surreais - pode ser mera coincidência ou não.

domingo, 29 de março de 2009

Paraíso diletante.


A priori, gostaria de pedir desculpas a vocês por ter deixado de postar durante quase uma semana. Enfim, não postava porque estava na semana do meu aniversário e eu estava me preparando pra estar feliz. 
Exatamente. No nosso aniversário tempos quase que uma obrigação de estarmos felizes, e eu não estava. Me preocupei muito. Atolado no trabalho, problemas a granel. Não bastasse isso, não estava feliz no meu aniversário. Que tipo de monstro eu seria? Infeliz na data do meu aniversário, quem eu penso que sou? Consegui ficar feliz. Foi uma verdadeira batalha interna que eu venci. Eis um poema que explica como:



Paraíso diletante.

Dia 27 de Março de 2009. 31 anos de idade. 
Sim, esse sou eu.

O pimentão deve ser refogado assim como as velas devem ser içadas,
assim como a isca deve ser colocada no anzol ou como a chuteira deve ser calçada.
Eu preciso estar feliz. É meu aniversário. 
O cheiro do azeite fervendo, em contato com o cogumelo shimeji e o molho shoyu, é tudo que eu preciso.

 
Cantores, atores, pintores, velejadores 
viajam todos os dias
a pontos quanto mais distante do que são,
mais próximos do que desejam.

A cebola arde nos olhos ao ser cortada
como arde nos olhos a tela do computador 
onde não sei o que escrevo
pra pessoas que não conheço.

O cheiro da carne preparada por um redator
é como o cheiro da água salgada
cortada por um engenheiro
O cheiro da felicidade real. 
Distante e real.

Içadas as velas,
Anzóis encastoados,
Bola em jogo e comida no fogo.
Meus textos, agora, são perfeitos.

O peixe na linha,
A bola na rede,
O jantar na mesa sorridente
e eu chego, no mesmo veleiro
ao meu paraíso diletante.


Ângelo Pinheiro


O ser humano precisa dia após dia do diletantismo. É uma forma de vencer a rotina.
Durante a vida, traçamos um caminho, quase sempre exatamente oposto aos nossos objetivos primordiais.

Não encarem esse poema como um poema triste. Pelo contrário. Sejamos felizes. Ainda que diletantes, sejamos felizes.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Como uma Luva


Segue um pequeno conto.

Um tanto mais ácido do que o último que aqui postei.  
Espero agradar. e aguardo comentáriuos sobre o conto.




Como uma luva

 

- Doutor Carlos – Gritei só de sacanagem assim que o vi, sentado de gravata. De terno e gravata, sentado no sofá da sala de espera, aguardando o chefe. – tô sabendo que vai ser promovido.

- Chega aqui, aqui pertinho – Disse o Carlão, com um tom sério que nunca tinha experimentado nas suas palavras.

- O que foi rapaz? ta meio verde.

- Porra, velho. Não vai dar.

- Não vai dar porque, Carlão? Até o chefe acha que vai dar.

- Não vai dar, porra! Eu tenho medo de não me encaixar.

- Não se encaixar em quê? Você é lá homem de ter medo, Carlão?

- Você já viu gente que não se encaixa? É uma merda, uma merda de dar medo.

- Que papo é esse, Carlão, não to te reconhecendo.

- Olha ali, ta vendo ele ali? – Pergunta, apontando pra o funcionário do almoxarifado, um meninote efeminado de seus, ironicamente, 24 anos. – Ele não se encaixa. Filho de pais rígidos, surrado pelo pai desde pequeno. Criou ódio pela figura masculina. O ódio é tão grande que veja como ele vence a figura masculina. Ele coloca a figura masculina de quatro e mete-lhe um caralho no rabo, é assim que ele vence. Sabe por quê? Porque ele não se encaixa, é por isso. Não se encaixa no mundo masculino.

- Puta que pariu, cara, você ta no terror.

 

Por um minuto fez-se o silêncio. No olhar do Carlão eu via um inédito pânico. A gravata definitivamente o enforcava. O seu aspecto era de desolação. Eu pensava: Será que é verdade? Pode a neurose dele ter respaldo na realidade? Podemos vencer nossas aflições atacando a nós mesmos e matando a imagem que as provoca através de reflexos em nós mesmos? De repente me veio à cabeça uma cena. O menino do almoxarifado no parapeito de uma janela, em pé. Olhando pra uma multidão de homens caminhando em sua direção, talvez em seu salvamento, encabeçada pelo seu pai e gritando “se derem mais um passo eu me atiro lá embaixo”. O passo dado, mergulhava o corpo no ar. Porém, enquanto cortava o ar era o rosto do pai dele a experimentar todo o terror. O rosto só mudava quando atingia o chão e lá se espatifava. Tudo fez um sentido assustador. E assustador era a palavra, voltei a falar antes que começasse também a acreditar naquilo.

 

- Carlão, é a sua chance de ascensão na carreira.

- Velho, eu quero continuar fazendo a merda que eu sempre fiz. Vim aqui pelos outros. To me sentindo um merda. Buscando um cargo pra que os outros vejam. To que nem o “Homem-semblante”.

- Caralho, Carlão, quem diabos é esse “Homem-semblante”?

- Você vai vê-lo daqui a pouco. Ele vai estar na minha reunião de promoção.

- Ah, então ele é do seu setor? – Perguntei com real curiosidade.

- Ninguém sabe de que porra de setor ele é. Ele tem um cargo tão indeterminado que não dá pra ter idéia do que ele faz. Ele está em todas as reuniões. Ele carrega sempre um livro debaixo do braço, o assunto depende do semblante que ele está assumindo no momento. Quando chegou aqui era líder estudantil. Carregava livros de pensadores libertários andava sempre vestido em uma calça jeans, camisa dobrada nos cotovelos e ideais socialistas, agora anda de terno e gravata e veste uma atitude séria de executivo. Os livros mudaram para administração empresarial, gestão de negócios e outros bichos do tipo. Continua lendo pelo sovaco e jogando na nossa mesa quando vai conversar conosco. O importante é todo mundo saber quem ele é dessa vez.

- E porque “homem-semblante”?

- Porra, achei que tu fosse mais vivo. Não lembra aquela época que ele namorou uma psicóloga? Não tirava essa palavra da boca. Daí eu lancei o apelido.

- Carlão, tenho que ir. Trabalho pra fazer.

- Eu Já sei. Vou jogar tudo pra cima. Isso não é pra mim.

- Pensa bem, rapaz, pensa bem.

 

Saí dali pensando pra caralho em tudo. Quisera eu ter a mesma coragem do Carlão e jogar tudo pra cima. Quisera eu não desejar uma promoção. Quisera eu ao menos ter coragem pra dizer “Joga essa merda pra cima mesmo, cara. Sou mais você.” Mas não, saio pensando na oportunidade que ele perdeu. Saio pensando em quanto seria bom pra mim a gerência de qualquer coisa ali dentro, sento meu rabo em frente ao computador e escrevo um texto que não sai de mim, sai da empresa.

Isso me faz pensar no “homem-semblante”. Ele está sempre buscando um cargo...indefinido, mas sempre tem alguma gerência, alguma gestão. Muda com a mesma força que muda de ideais. Me vem imediatamente uma imagem à cabeça – sempre me vem uma merda de uma imagem à cabeça. Um outdoor em branco. Toda manhã eu passo por ele. Tem uma pichação feita a spray dizendo “vendo este vazio”.

 

VENDO ESTE VAZIO.

 

Em spray vermelho. Vê-se que foi escrito às pressas pelas letras trêmulas. Nunca tinha parado pra pensar no conteúdo filosófico da frase. No conteúdo de protesto da atitude de pichar um outdoor em branco com isso. Principalmente no quanto isso tinha a ver comigo, com o homem-semblante e com tudo o que o Carlão estava negando.

 

Passo pela sala de espera. Nem sinal do Carlão. Bato meu ponto e vou pra casa.

Era uma sexta-feira, o que me lembra que só retornarei à empresa na segunda.

Penso no final de semana e novamente me vem à mente a merda do outdoor.

 

VENDO ESTE VAZIO.

 

Domingo, praia, cerveja. Encontro o homem-semblante na areia. Usando uma viseira, suado, de sungão, mascando chiclete e agitando próximo à rede. Nos finais de semana ele é jogador de futvôlei.

Ele corre ao meu encontro. – Soube do carlão? – Pergunta arfando

- Não, não soube, o que foi?

- Disse pro chefe que só ficaria se fosse com o trabalho antigo, mas recebendo o valor da promoção.

- Hum, e aí?

- Aí o chefe disse que não seria possível. Ele disse que também não seria possível de outra forma.

- Porra, e aí? Deixa de mistério.

- Foi demitido. Disse que com o dinheiro da demissão vai abrir um bar.

- Saquei. Faz sentido. E o cargo?

- Eu incorporei o cargo. Agora sou Sub-Gerente comercial e gestor de eventos externos, mas também assumo as responsabilidades de gestor institucional.

 

Despedi-me sem formalidades e segui pela beira do mar. O mar molhava os meus pés enquanto a cerveja passava pela minha garganta e molhava a minha alma.

 

 

 VENDO ESTE VAZIO.

 

E tudo fazia sentido. O ciclo se fechava. E cada cargo se encaixava em quem o preenchia.

 

Como uma luva.


Ângelo Correia Pinheiro