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quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Deliciosamente burro



Lá vamos nós.

Burro como estou, escrevo esse conto a vocês. E, com as graças da santa ignorância, segue ele, incolume. Sem ser maculado por um pingo de brutal sabedoria, como um Antoine que encontrou toda a sua felicidade, eis um conto burro, aos que merecem.




Eram 16:00 e alguns minutos, mas era noite. Na verdade era noite desde as 9 da manhã. Sabe aqueles dias dos quais o sol independe? Por mais que raie, a intensidade da noite é tanta que o suplanta sem luta.

Esse era o dia.

Andando pela rua, acordado desde as 06 da manhã desse dia dia noite, encontro Carlão.
Com um semblante preocupado carregando uma garrafa de vinho barato no sorriso e outra na mão,a do sorriso vazia, e a outra seguindo o mesmo curso, ele, sardônico, me saúda com a seguinte frase:

- Sabe que hoje, oficialmente, tentaram me marginalizar?
- Salve Carlão. O que manda? Marginalizar como, rapaz? - Perguntei preocupado.
- Você não sabe do que me chamaram hoje... – Falou Carlão, com o sorriso sarcástico no rosto, marcando uma crueldade forte demais pra ser expressa de outra maneira que não com graça.
- O que houve, meu amigo? Larga do vinho e me fala.
- Se largo do vinho estou fudido. Me chamaram de intelectual.
- Grande Carlão!! Intelectual. – Falei, compartilhando o sorriso cruel de Carlão, sem saber direito o porque. – Mas marginal porque? Ser intelectual deve ser bom demais.
- É limitador, porra. Imagine aí. Quanta coisa um intelectual NÃO pode fazer?
- Não pode?Como assim?
- Se eu aceitasse o fato de ser um intelectual, de que forma eu poderia seguir a vida? De que maneira eu ia prestar minhas contas? Quem é intelectual tem uma responsabilidade. É que nem virar adulto. Criança pode brincar, adulto não pode. Criança pode chorar, adulto não pode.
- Caralho, Carlão, que merda você colocou nesse vinho? – Perguntei rindo nervosamente, enquanto estendia a mão em direção à garrafa.
- Sério, meu velho. Você acha que, se eu aceitasse ser intelectual, eu poderia rir das coisas que rio?? E a consciência social? E o senso crítico?
- Porra, nada a ver isso. Não viaje pra outros planetas. - Falei nervoso, quase gaguejando. Engasgado em todos os livros esclarecedores que já havia lido.
- Velho. É sério. Pense bem. Quanta responsabilidade tem uma porra de um intelectual. É ofensivo. A ignorância é uma benção. Quem não sabe, não sofre. Quem sabe e conhece, sofre pelo seu e pelo dos outros. To fora. Passa o vinho. – Disse, me estendo a mão.
- Tem sentido. – Falei a ele, engolindo minha cultura em um longo gole de vinho, passei a garrafa.
- É uma merda, né? – Ri sofregamente. – Mas tem um segredo. Bebe mais.
- Dá essa porra aqui – Estendo a mão e tomo mais um largo gole de estupidez. Branda e macia burrice engarrafada. – Qual o segredo? Fala.
- Aceite NA HORA.
- Peraí. A história não era negar a intelectualidade, porra?
- Claro. Mas, pensando bem, quem seria burro o suficiente pra aceitar a intelectualidade de vez, assim? Pegou? – Disse Carlão, enquanto a minha mente começava a versar sobre burrices e inteligências. A consciência é um desperdício de energia vital.
- Uau. Profundo isso.
- Quem muito pensa, pouco vive...quer beber mais? – Emborca a paz em um canto, enquanto, protegido e trôpego, busca com os olhos outro libertário bar.
- Vamos lá. – Enquanto tropeço a caminho do bar, realizo que verdadeiro intelectuais, conscientes do que está acontecendo no mundo, não iriam beber às 17:30 de um dia de semana...Mas há muito era noite. E a voz precisava calar. Um drink certamente ajudaria.

Rumamos. Bebemos até quase raiar o dia em nós. E, finalmente, dormi sozinho.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O desejo do enlace


Somos malditos - a quem entender possa - e sabemos disso.

A maldição poética não é menos maldita dado o seu lirismo.

Passei a manhã sendo brindado por belos conselhos, pessoas que amo e que me amam, que apenas me querem bem. Ainda assim, cunhado pela maldição em que me encontro, escrevi minhas sensações, na vã esperança de que, colado na tela do computador, o sangue que de mim brota, diminuisse.


Eis mais um poema, sim, estou numa fase poética:




Malditos, menos ela

Maldita seja a amizade pura,
Com conselhos nobres,
Que só nos querem bem.

Já eu não me quero bem,
Quero o bem dela,
Ainda que ela não seja minha no meu querer.

Ainda que a sua existência dentro de mim machuque,
Escalando as minhas entranhas numa fútil tentativa de sair,
Quando a engulo de volta,
Sei que é ela, em mim, o único bálsamo.

Maldigo o bem que me querem,
Maldigo o caminho correto – Que assim me apresentam,
Maldigo a mim mesmo,
Mas jamais maldirei a ela.

sábado, 30 de outubro de 2010

Tertúlia interior




Caros,

Àqueles que têm paciência e boa vontade de me ler, segue um pedaço de minh'alma.
Uma breve poesia que me ocorreu ao olhar para o sol, como ele se apresenta pra mim agora: Lindo, quente e intenso. Com capacidade de queimar - mas jamais intencionalmente - porém mil vezes me queimaria apenas para desfrutar de tanta vida que dele se origina.








Olhos meus


Há algum tempo, conheci olhos.
Olhos vivos e atentos,
Dos quais indebitamente me apropriei.

Nunca fui de me contentar com pouco.
Sempre dado a exageros, corpos não me pareciam tanto,
Quando súbito conheço olhos
Que ao incidir sobre os meus - ou apenas deitar nas minhas palavras, seguindo seu curso viva e atentamente – eram mais tocantes que mil aventuras.

Não sei o quanto daqueles olhos meus
Enxergavam suas as minhas palavras,
Os meus gestos
E os sorrisos de olhares meus.

Deito agora no descampado que ora sou,
No quarto vazio de onde retirei tudo que não mais se faz importante desde que existam eles.
E penso nos olhos.

Em pensamento – quimera anestésica que é – eles são tão meus quanto eu sou deles.
E, onde estiverem, em semi-consciência opto por crer que me enxergam.

No vazio que estou,
Após terraplanar todo o terreno que era meu,
Deposito esses olhos meus onde só eles cabem.

Lá, ainda que tomado por uma gestalt, que se apresenta apenas a quem assim enxerga,
Eles são meus.

E sorrio,
Intensamente como sempre vivi,
E vivamente como em loucos sonhos poéticos,

Sorrio.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

De volta(novamente)







Ok, após grande tempo PARADO, aqui me tens de regresso.


Não gostaria de voltar sem um conto para brindar-vos, porém fazia-se cada vez mais urgente o retorno.
Volto pois, com um pensamento acerca da vida, um tanto quanto poético.

Ei-lo:


Tenho me esforçado, e não apenas Deus como todos os seus representantes que me cercam - sim, falo dos verdadeiros amigos que não acredito serem de origem diversa - são testemunhas de que é verdade, para ser FELIZ nos últimos dias, quiçá meses.


Já disse o poeta (me nego a citar qual) "Quem quere passar além do Bojador Tem que passar além da dor."

Me aproprio, com perfeita noção de que a paráfrase não chegará perto da poesia original, para dizer que aquele que deseja atingir a felicidade tem que passar por sofrimentos.

Cá estou eu, atravessando o supracitado Cabo do Medo. Desviando dos arrecifes e reconhecendo, a cada dia mais, que os monstros marinhos são apenas frutos da minha imaginação.

A navegação há de ser lenta, pois o meu bojador também demanda cautela, porém a faço com os olhos cheios de novas descobertas, tão cheios que me escorrem e deitam no peito estufado, não conseguindo mais segurar o grito de "terra a vista".

domingo, 1 de agosto de 2010

O pecado do prazer


Olá meus caros,

É interessante como estas duas palavras, apesar do seu significado TÃO diverso geralmente se associam.

Prazer e pecado...devido às leis morais impostas atualmente, existe apenas uma tênue linha que separa os dois. Linha esta EXTREMAMENTE virtual, posto que não se pode determinar o que é prazeroso e o que é pecaminoso para cada um sem se considerar quem é cada um.

Divagações à parte, segue um conto a esse respeito:


O pecado do prazer


Acordo eu em mais um dia chuvoso de Salvador, antiga cidade do sol.
O dia, apesar de chuvoso, era um domingo, e eu vago pela rua, buscando um sentido para o sol que fez a semana inteira deixando apenas para o final de semana as torrenciais chuvas.
Ao passar pela porta do primeiro bar aberto(em verdade esse bar não fecha, como vim a descobrir a seguir) e ouço uma voz conhecida.

- Ô rapaz!! - Grita a voz, me assustando.
- Aqui, ô.
- Grande Carlão - O reconheço primeiro pelo copo na mão e o cigarro na boca, apenas depois dessa breve análise consigo enxergar a fisionomia do meu caro amigo Carlão. - O que me conta de novo?
- estou bebendo em nome de nós todos...os oprimidos do mundo.
- Opa. de que opressão você está falando, meu velho? - Pergunto eu, querendo saber qual o mais novo motivo que o Carlão arranjou para transformar uma bebedeira em um ato de nobreza.
- Bebe comigo. Vai, pega um copo. - Diz Carlão, me passando um copo que ele, prontamente, encheu de cerveja. - Um brinde à morte do prazer. À lenta, gradual e esquematizada morte do prazer.
- Que é que é isso, meu irmão? - Respondi envergonhado, ao notar que TODOS - apesar de todos serem apenas um grupo ínfimo de pessoas tomando café da manhã - estavam nos olhando. Não sei se realmente discordava do que ele falava, ou se apenas me comportava de maneira a amenizar os olhares que fulminavam os nossos matinais copos de cerveja.
- Morte sim. A cada dia mais. O prazer está cada vez mais morto. vamos beber o defunto.
-Desde quando você está com essa idéia, Carlão? - Perguntei, sentando-me e tomando o primeiro gole, na esperança do elixir etílico me auxiliar na compreensão da filosofia do meu amigo.
- Desde sempre. O problema é que antes era metafórico e comportamental...agora está virando legislação. LEGISLAÇÃO, compreende?

A essa altura nos fitavam todos os olhares censores. Um esgar de nojo teimava em escapar do canto da boca, mesmo dos que fingiam não estar julgando, posto que julgar os outros é também um fato censurável.

- Preste atenção no que vou te falar. O prazer é contraproducente. Contraproducente, caralho, leve fé.
- Carlão, explica isso aí que eu não to entendendo nada.
- Deixe eu começar lá do início. Quando pequeno, você nunca ouviu que "você não pode falar com estranhos?"
- Claro, conselho de mãe...natural.
- Se eu não falasse com estranho nenhum...como eles deixariam de ser estranhos? Com quem eu falaria? Com quem minha mãe determinasse que não é estranho? - Falava tropegamente o Carlão, enquanto o cigarro bailava na boca como a filosofia bailava no ar.
- Faz sentido, mas isso as mães fazem pela segurança dos seus filhos, porra.
- Ceeerto! Tá bom. As mães fazem isso pra evitar que o filho se meta em problema, mas se eles obedecessem ao pé da letra, aí sim você ia ver gente problemática...sem amigos, ou sem um amigo escolhido sequer. Já pensou nisso??
- Tá certo, mas insisto na questão da segurança.
- Segurança é o caralho. É o preparatório para a moral castradora e totalitarista. Isso sim. - Gritava Carlão, embolando as palavras na língua amarga pelo cigarro e a cerveja. - Minha avó...sabe com quantos anos ela se casou? 13, com 13 anos. E o pai dela entregou a mão dela a meu avô, sem problema nenhum. Hoje...seria preso como pedófilo.
- Peraí...aí você já tá apelando. As crianças podem ser ludibriadas por adultos mal intencionados...essa lei é para a defesa da criança e do adolescente.
- Tá, tá....você bebe devagar demais. Deixe eu mudar pra um menos polêmico, então. Porque eu não posso fumar em lugar fechado? Porque a porra da gordura trans vai virar ilegal?
- Pronto, você vai citar TODAS as leis criadas em defesa do cidadão, é isso?
- Cidadão o que, rapá, deixa de ser inocente. Se você abraça todas as leis, você começa comendo biscoito sem gosto, carne sem gordura...quando você menos esperar a sua filha tá enfiada numa burka. - Falava Carlão, gradativamente perdendo controle da situação, e coerência no discurso.
- Carlão, o papo tá ótimo, mas tenho mais coisas pra fazer do que beber na manhã de domingo, valeu? - Digo eu, enquanto me levanto, viro o copo de um gole e o emborco sobre a mesa.
- Entenda, meu amigo. O prazer é o mais novo pecado. O ser humano tem o prazer como objetivo. De que forma poderiamos ser facilmente controlados se estivessemos alcançando o nosso objetivo de vida? Acha que um homem feliz ia ficar ligando pra as amarras sociais?? ACORDA cara!! - Por um instante o carlão parecia transfigurar o seu ser bêbado em um ser profético, mas durou apenas o suficiente para que eu desmontasse o meu próprio olhar julgador, dentre todos os outros que metralhavam o filósofo libertário de boteco.

Ao sair notei que o ambiente já havia lotado. Crianças e adultos rodeavam a gigantesca mesa de café da manhã. Súbito uma criança começa a correr e é apanhado pelo braço pela mãe, que grita com ele: - Menino. Você não sabe que a pressa é inimiga da perfeição?
- Ih, mãe. Não gosto quando você fala isso. Odeio.
- OPA MOCINHO!! O que eu já te falei sobre o ódio? Não se deve odiar nada nem ninguém. - Disse a mãe, crispando os lábios e semi-cerrando os dentes. os mais desavisados enxergariam um ódio manifesto contra o próprio ódio....paradoxal.

Driblei a criança -que a essa altura pedia desculpas à mãe - e sua mãe, mas não deixando de pensar em qual era o sentido de se proibir a urgência. Porque nunca devemos sentir pressa? Porque aquela criança não podia sentir pressa ou ódio? Quando ele estudar o holocausto, ele tem que ter a crística atitude de perdoar Hitler?

Enquanto pensava isso, o garçom dizia ao Carlão para ele se retirar caso pretendesse fumar outro cigarro, pois em ambiente fechado é proibido por lei. Avisou também que a cerveja pararia de ser servida até o horário do almoço, portanto ele buscasse outro local para beber. os Olhares permaneciam cortando o Carlão como as próprias lâminas da razão, empunhadas pelos auto-proclamados censores modernos.
Foi inevitável lembrar que a poucos instantes o Carlão bebia e fumava no mesmo ambiente fechado do qual estava sendo gentilmente enxotado. Senti, por alguns instantes, falta do livre arbítrio, do direito de gostar de quem quisermos e de desgostar de quem quisermos também.

Aguardei a saída do profeta da boemia e o interpelei:

- Meu caro, você tinha razão.
- Sobre a morte do prazer? fato inegável.
- Sobre eu beber devagar demais. Só agora a bebida está fazendo efeito, vamos achar outro bar.

E seguimos, bebendo e fumando de acordo com a moderação imposta por nós mesmos...até que alguém encontre uma brecha legal para que não mais o façamos.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Encontro com a dor




Sem mais delongas, lá vai um conto.






O Bolo Floresta Negra.




Eu me Chamo Carlos, O Carlão.

Estou aqui pra relatar um fato que me ocorreu quando eu tinha apenas 10 anos de idade, ou melhor, estava completando dez anos de idade.
Um fato que envolve um Bolo Floresta Negra e uma filmagem de festa.

Bom, vou parar com o a enrolação e partir para a história:



Era um dia de sol, lembro bem do sol forte. Maldito sol. Malditas nuvens brancas e céu azul. Eu estava com uma camisa azul e um short branco, fatos que fui obrigado a lembrar sempre por causa da fita. Maldita fita.

Sim, a fita. Esse ano, minha mãe tinha me prometido de presente de aniversário uma fita com a gravação do aniversário. Em 1988 era um luxo que nenhuma criança que eu conhecia, além das muito ricas, tinham. Até então eu estava super feliz com a fita. MALDITA FITA.

vale aqui uma pequena pausa pra falar sobre a minha mãe:

Separada quando eu tinha 3 anos de idade e meu irmão tinha 5, por ter sido traída por meu pai - fato que eu soube 20 anos depois através de pessoas que nada tinham a ver com a história - minha mãe se viu obrigada a trabalhar 3 turnos para sustentar os filhos sem deixar que nada os faltasse. E eu falo NADA mesmo. Do mais necessário aos mais supérfluo, tinhamos de curso de inglês a video-games de última geração, em detrimento disso, minha mãe tinha roupas tão puídas quanto a sua vida social e amorosa, que se arrastavam coladas a ela das 4 e meia da manhã, quando entrava no seu primeiro turno de trabalho às 23:30, quando chegava, destroçada do seu último turno de trabalho.
Olhos verdes, coxas grossas, cintura fina. Era uma mulher linda, se auto-destruindo aos poucos com cigarro e desgosto, fingindo a nós e ao mundo todo - inclua-se ela própria - que não se casara de novo por não querer "padrastos para os filhos dela". A preocupação existia, mas fato era que ela não tinha tempo pra respirar fora dos turnos de trabalho...que tempo teria ela de arranjar um namorado? Houveram alguns...rápidos, pouco marcantes. Ela merecia mais.

Voltemos à história.

Conforme citado acima, eu não tinha sido criado por meu pai. Não aprendi com ele a jogar bola, a andar de bicicleta e nem nenhuma outra viadagem parecida.

Mas esse dia eu completaria 10 anos, e teria gravação e tudo. Ele estaria lá. Quem sabe eu cortaria a segunda fatia do bolo floresta negra pra ele(a primeira seria da minha mãe, claro). Tudo isso estaria registrado em filme e eu teria 2 horas da presença de meu pai, pra assistir durante todas as outras horas de ausência. A doçura daquele bolo floresta negra e das fatias cortadas para meu pai e minha mãe, durariam para sempre. Eu estava realmente feliz. Até então.

MALDITO BOLO FLORESTA NEGRA.
MALDITA GRAVAÇÃO.
MALDITOS RAIOS DE SOL E NUVENS BRANCAS.

Começam a chegar os convidados. O telefone toca. Posso ver pela expressão de desespero no rosto cansado de minha mãe que algo está errado. Ela me chama.

- Seu pai, quer falar com você. - Eu atendo.
- Pai, você tá vindo? Vai chegar tarde? - Perguntei ansioso e já esperando pelo pior.
- Olha, meu carro quebrou. Vou fazer o que puder pra aparecer aí, mas não garanto que dê pra eu chegar.


Eu desliguei. nem lembro o que falei em resposta. O bolo floresta negra começava a ficar amargo e eu já sabia que a segunda fatia seria da minha avó.
"Meu carro quebrou??" Será que eu não merecia nem uma desculpa melhorzinha? Se eu tivesse um filho completando dez anos, especialmente um que eu tivesse negligenciado durante os últimos seis anos, eu iria à festa dele nem que fosse a pé.

Segue a festa. Começa a funcionar a cabeça infantil. Foge por um segundo a inteligência e entra a capacidade de fabular da criança. as palavras "Vou fazer o que puder" parecem fazer sentido. Fico feliz de novo.
A cada vez que a buzina toca, meu coração dispara. Fabulo que pode ser ele. Nunca é. Novo parente, novo amigo, nova decepção.
Lá fora eu olho o sol. Brilha sem a menor piedade de mim. MALDITO SOL. Podia ao menos estar chovendo torrencialmente pra que tornasse crível o fato de que pegar um ônibus para o aniversário de dez anos do filho era algo impossível. MALDITO SOL E MALDITAS NUVENS BRANCAS. MALDITO CÉU AZUL, DESTRUÍDOR DO MEU FABULÁRIO, DO MEU DELÍRIO DE CRIANÇA.
Essa tortura se alastrou por mais 4 horas. E eu, esperançoso, insistia pra que não se cortasse ainda o bolo floresta negra.

Os convidados já começavam a ir embora quando eu aceitei que o bolo fosse cortado. primeira fatia, pra minha mãe, claro. Segunda fatia, pra minha avó. Eu até provei do bolo, mas era de um féu inesquecível. Ele e todas as suas malditas bilhares de calorias em forma de diabetes. MALDITO BOLO FLORESTA NEGRA.

Me diverti na festa, claro. Eu tinha dez anos...nessa idade a nossa capacidade de criar, de fabular, vai ao ponto de conseguirmos transformar uma caixa em um carro, um pedaço de madeira em uma espada e uma festa dessas em algo feliz.

A festa teve bons momentos. A gravação. MALDITA GRAVAÇÃO. Foi sem dúvida o maior presente. vale ressaltar que minha mãe só teve como bancar esse presente porque os seus 3 turnos de trabalho eram como editora de pauta em um jornal local, portanto, câmera, assistente de câmera e tudo mais eram mais acessíveis.

Apenas dias depois, quando a fita foi editada é que ela ganhou o caráter de maldita.
Em algumas cenas eu enxergava a presença de minha mãe, em outras eu enxergava a presença de meus amigos, algumas enxergava a presença de desconhecidos(amigos de amigos, sabe). Haviam cenas em que eu enxergava a presença daquelas histórias bem típicas de festa, como o gordo que fica embaixo da mesa detonando os doces e pãezinhos, aquela professora que a gente nunca vai contar a ninguém que achava muito gostosa já naquela época fazendo um carinho despretensioso e deixando-me completamente sem graça... Mas não. nunca me diverti com essa fita. MALDITA FITA. Nunca consegui a assistir sem chorar, porque em todas as cenas eu enxergava a ausência do meu pai.


Hoje. Anos e anos passados às vésperas do meu aniversário de 36 anos, ainda acho extremamente cafona filmagem de aniversário e tento fugir de todas assim que a câmera chega perto de mim, e ODEIO, ODEIO bolo floresta negra.






P.S. : Esse conto é uma obra de ficção e a associação de qualquer fato ou personagem desse conto com pessoas e fatos da vida real é mera coincidência, inventividade e imaginação excessiva.