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domingo, 1 de agosto de 2010

O pecado do prazer


Olá meus caros,

É interessante como estas duas palavras, apesar do seu significado TÃO diverso geralmente se associam.

Prazer e pecado...devido às leis morais impostas atualmente, existe apenas uma tênue linha que separa os dois. Linha esta EXTREMAMENTE virtual, posto que não se pode determinar o que é prazeroso e o que é pecaminoso para cada um sem se considerar quem é cada um.

Divagações à parte, segue um conto a esse respeito:


O pecado do prazer


Acordo eu em mais um dia chuvoso de Salvador, antiga cidade do sol.
O dia, apesar de chuvoso, era um domingo, e eu vago pela rua, buscando um sentido para o sol que fez a semana inteira deixando apenas para o final de semana as torrenciais chuvas.
Ao passar pela porta do primeiro bar aberto(em verdade esse bar não fecha, como vim a descobrir a seguir) e ouço uma voz conhecida.

- Ô rapaz!! - Grita a voz, me assustando.
- Aqui, ô.
- Grande Carlão - O reconheço primeiro pelo copo na mão e o cigarro na boca, apenas depois dessa breve análise consigo enxergar a fisionomia do meu caro amigo Carlão. - O que me conta de novo?
- estou bebendo em nome de nós todos...os oprimidos do mundo.
- Opa. de que opressão você está falando, meu velho? - Pergunto eu, querendo saber qual o mais novo motivo que o Carlão arranjou para transformar uma bebedeira em um ato de nobreza.
- Bebe comigo. Vai, pega um copo. - Diz Carlão, me passando um copo que ele, prontamente, encheu de cerveja. - Um brinde à morte do prazer. À lenta, gradual e esquematizada morte do prazer.
- Que é que é isso, meu irmão? - Respondi envergonhado, ao notar que TODOS - apesar de todos serem apenas um grupo ínfimo de pessoas tomando café da manhã - estavam nos olhando. Não sei se realmente discordava do que ele falava, ou se apenas me comportava de maneira a amenizar os olhares que fulminavam os nossos matinais copos de cerveja.
- Morte sim. A cada dia mais. O prazer está cada vez mais morto. vamos beber o defunto.
-Desde quando você está com essa idéia, Carlão? - Perguntei, sentando-me e tomando o primeiro gole, na esperança do elixir etílico me auxiliar na compreensão da filosofia do meu amigo.
- Desde sempre. O problema é que antes era metafórico e comportamental...agora está virando legislação. LEGISLAÇÃO, compreende?

A essa altura nos fitavam todos os olhares censores. Um esgar de nojo teimava em escapar do canto da boca, mesmo dos que fingiam não estar julgando, posto que julgar os outros é também um fato censurável.

- Preste atenção no que vou te falar. O prazer é contraproducente. Contraproducente, caralho, leve fé.
- Carlão, explica isso aí que eu não to entendendo nada.
- Deixe eu começar lá do início. Quando pequeno, você nunca ouviu que "você não pode falar com estranhos?"
- Claro, conselho de mãe...natural.
- Se eu não falasse com estranho nenhum...como eles deixariam de ser estranhos? Com quem eu falaria? Com quem minha mãe determinasse que não é estranho? - Falava tropegamente o Carlão, enquanto o cigarro bailava na boca como a filosofia bailava no ar.
- Faz sentido, mas isso as mães fazem pela segurança dos seus filhos, porra.
- Ceeerto! Tá bom. As mães fazem isso pra evitar que o filho se meta em problema, mas se eles obedecessem ao pé da letra, aí sim você ia ver gente problemática...sem amigos, ou sem um amigo escolhido sequer. Já pensou nisso??
- Tá certo, mas insisto na questão da segurança.
- Segurança é o caralho. É o preparatório para a moral castradora e totalitarista. Isso sim. - Gritava Carlão, embolando as palavras na língua amarga pelo cigarro e a cerveja. - Minha avó...sabe com quantos anos ela se casou? 13, com 13 anos. E o pai dela entregou a mão dela a meu avô, sem problema nenhum. Hoje...seria preso como pedófilo.
- Peraí...aí você já tá apelando. As crianças podem ser ludibriadas por adultos mal intencionados...essa lei é para a defesa da criança e do adolescente.
- Tá, tá....você bebe devagar demais. Deixe eu mudar pra um menos polêmico, então. Porque eu não posso fumar em lugar fechado? Porque a porra da gordura trans vai virar ilegal?
- Pronto, você vai citar TODAS as leis criadas em defesa do cidadão, é isso?
- Cidadão o que, rapá, deixa de ser inocente. Se você abraça todas as leis, você começa comendo biscoito sem gosto, carne sem gordura...quando você menos esperar a sua filha tá enfiada numa burka. - Falava Carlão, gradativamente perdendo controle da situação, e coerência no discurso.
- Carlão, o papo tá ótimo, mas tenho mais coisas pra fazer do que beber na manhã de domingo, valeu? - Digo eu, enquanto me levanto, viro o copo de um gole e o emborco sobre a mesa.
- Entenda, meu amigo. O prazer é o mais novo pecado. O ser humano tem o prazer como objetivo. De que forma poderiamos ser facilmente controlados se estivessemos alcançando o nosso objetivo de vida? Acha que um homem feliz ia ficar ligando pra as amarras sociais?? ACORDA cara!! - Por um instante o carlão parecia transfigurar o seu ser bêbado em um ser profético, mas durou apenas o suficiente para que eu desmontasse o meu próprio olhar julgador, dentre todos os outros que metralhavam o filósofo libertário de boteco.

Ao sair notei que o ambiente já havia lotado. Crianças e adultos rodeavam a gigantesca mesa de café da manhã. Súbito uma criança começa a correr e é apanhado pelo braço pela mãe, que grita com ele: - Menino. Você não sabe que a pressa é inimiga da perfeição?
- Ih, mãe. Não gosto quando você fala isso. Odeio.
- OPA MOCINHO!! O que eu já te falei sobre o ódio? Não se deve odiar nada nem ninguém. - Disse a mãe, crispando os lábios e semi-cerrando os dentes. os mais desavisados enxergariam um ódio manifesto contra o próprio ódio....paradoxal.

Driblei a criança -que a essa altura pedia desculpas à mãe - e sua mãe, mas não deixando de pensar em qual era o sentido de se proibir a urgência. Porque nunca devemos sentir pressa? Porque aquela criança não podia sentir pressa ou ódio? Quando ele estudar o holocausto, ele tem que ter a crística atitude de perdoar Hitler?

Enquanto pensava isso, o garçom dizia ao Carlão para ele se retirar caso pretendesse fumar outro cigarro, pois em ambiente fechado é proibido por lei. Avisou também que a cerveja pararia de ser servida até o horário do almoço, portanto ele buscasse outro local para beber. os Olhares permaneciam cortando o Carlão como as próprias lâminas da razão, empunhadas pelos auto-proclamados censores modernos.
Foi inevitável lembrar que a poucos instantes o Carlão bebia e fumava no mesmo ambiente fechado do qual estava sendo gentilmente enxotado. Senti, por alguns instantes, falta do livre arbítrio, do direito de gostar de quem quisermos e de desgostar de quem quisermos também.

Aguardei a saída do profeta da boemia e o interpelei:

- Meu caro, você tinha razão.
- Sobre a morte do prazer? fato inegável.
- Sobre eu beber devagar demais. Só agora a bebida está fazendo efeito, vamos achar outro bar.

E seguimos, bebendo e fumando de acordo com a moderação imposta por nós mesmos...até que alguém encontre uma brecha legal para que não mais o façamos.