
Lá se vai mais um conto. Para os que simpatizam com o Carlão, ei-lo novamente.
Aos que se identificam com o clássico Cafajeste, como a eterna personagem, alguns dizem que autobiográfica, de Jece Valadão, eis o romantismo de uma classe esquecida e abominada, sobretudo agora, em tempos da crescente e quase opressiva "liberdade feminina".
Sobre o dia em que Carlão morreu.
Chegava eu no trabalho, pontualmente às 08:00, talvez 07:55, quando me dão um aviso estranho. Muito estranho.
- O Carlão chegou cedo. Está te esperando na sua sala.
- Fala sério Selma. Quem morreu?
- A julgar pela cara, algum parente próximo.
Subi as escadarias numa empolgação preocupada. Muito diferente das minhas subidas regulares no mesmo horário. Tanto me empolguei que havia me esquecido de bater o ponto. Retorno, puxo o cartão de ponto, o coloco na máquina e olho o cartão do Carlão. 07:43. Há algo de errado, muito errado.
- Carlão! O que é que há, meu irmão? - Pergunto ao entrar na sala em um rompante.
- Uma merda! Uma merda, só isso. - Me responde ele, com um cigarro apagado no canto da boca.
- Ânimo, rapaz. Quem morreu? - Pergunto esboçando um sorriso nervoso e já temendo a resposta.
- Eu. Assassinado por uma mulher. - responde Carlão, desolado. Isqueiro na mão, mas sem forças e nem decisão para acender o cigarro. - O pior? Fui eu o mandante do crime.
- Porra, esmiuça isso daí, Carlão! Esmiuça.
- Vamos sair daqui. Não quero ser a piadinha suicída do escritório. - Falou Carlão, se levantando e pairando ante mim. Tal e qual o fantasma dele mesmo.
Seguimos para a praça em frente ao trabalho. O cigarro ainda no canto da boca. O filtro já molhado. O isqueiro ainda na mão recalcitrante. Fato, jamais havia visto o Carlão tão moribundo. Lembro que no enterro do próprio pai ele voltou-se pra mim, olhos marejados de choro e cigarro no bico, porém aceso, e disse:
- Vamos adiantar esse processo. Chore tudo o que você tem pra chorar e vamos sair pra tomar uma. Amacia a alma e o coroa com certeza não ia me querer morto ao lado dele.
Esse era o Carlão. Não esse monte de carne mole que estava à minha frente, de gravata. O Carlão de gravata.
- Escuta. Essa é boa. Você lembra da Clarinha?
- Claro, claro. A que você disse que tava comendo.
- Isso, essa. A assassina. - Falou Carlão, vivo pela primeira vez no dia. E acendeu o cigarro. - Não costumo me envolver com esse tipo de mulher, e não devia ter me envolvido. Digo mais.
- Ah, mas a Clarinha é um doce, o que foi que houve?
- Justamente, porra. Experimente passar um dia inteiro bebendo e depois engolir um doce. Não dá. Desanda. No máximo um ovo de codorna e vá lá. Fiquei um dia com essa cobra. Dois, Três. No quarto dia ela me chamou pra dormir na casa dela. Eu fui. Era o começo da minha desgraça.
- Carlão, essa viadagem toda é porque você se apaixonou?
- Escuta, porra. Não tenta adivinhar. - Retrucou o Carlão, se levantando, definitivamente com vida.
- Tá, tá. Fala.
- Ao quinto dia, senti algo estranho. Passei o dia querendo que ele terminasse. Mas não pra beber, pra encontrar com ela.
- Que bonito, Carlão. Uma alma por trás de tanta pedra, quem diria. - Falei sorrindo sarcásticamente.
- Alma essa que matamos juntos, presta atenção. Fui pra a casa dela novamente. E nos outros dias. Um casalzinho, uma merda de um casalzinho. Com um mês nesse semi-namoro com ares de casamento eu conheci uma amiga dela. A Juliana. Você conhece ela. Trabalha aqui do lado, na farmácia.
- Ahn? A sexy machine? Aquela que faz o pessoal entrar pra comprar aspirina e sair com remédio pro coração?
- ESSSA, ESSA MESMA!! Amiga de infância, calcula? Logo que ela entrou na casa estava trajando um vestidinho preto, mais colado no corpo do que a própria pele. Me olhou de cima a baixo. Escaneava meu corpo e lia toda essa tal alma que eu estava começando a construir. Tomamos dois ou três drinques e ela finalmente soltou a primeira palavra.
- Cal, tá parecendo que acertou ein. Esse tem cara de homem.
- Que é isso, Jú. Não cobiça o que é meu que é feio. - E riram. Mas risos loucos. Frenéticos. Numa espécie de piada que só elas eram capazes de entender.
- Caramba Carlos Santos, que loucura.
- Você não viu da missa um terço, aguarda. Quando ela saiu, a Clarinha veio pra mim e falou bem assim:
- Linda, né?
- Aham - Disfarcei o quanto pude. - bonita, é verdade.
- Não encosta nela, ein? Eu sei no que você tá pensando.
- O outro dia me foi um inferno. Passei o dia pensando no que ela me disse "eu sei no que você tá pensando". Nem eu sabia. Mas foi no sábado passado que se deu a desgraça. Meio dia, me liga a Clarinha. Me dizendo bem assim:
- Meu anjo, passa na casa da Jú e pega uns DVDS que deixei lá? Faz isso por mim? - E me explicou todo o endereço. Eu não podia dizer que não iria. Claro que fui. Quando cheguei lá, ela estava de shortinho de dormir e blusa de seda...camisolinha, porra, camisolinha.
- Caraca Carlão, que sinuca de bico. - Comentei empolgado com a história.
- Vê só, tá no começo da merda. Ela me mandou entrar e procurar os dvds. abaixei-me no quarto dela. Isso mesmo, NO QUARTO DELA. e comecei a catar. Sabia os títulos, a Clarinha tinha me dito. Achei os três e quando me virei, prestes a sair, me deparo com a Juliana, deitada na cama de calcinha. SÓ DE CALCINHA. e ela me diz:
- Vem cá, tenho que ver se a Cal escolheu um homem de verdade dessa vez.
- Putaquiupariu Carlão! Que que tú fez?
- Olhei pra a cara dela, agradeci, fingi que nada demais estava acontecendo, virei as costas e fui embora. No outro dia pela manhã, me liga a Clarinha:
- Carlão, preciso te ver.
- Carlão? que que houve com "meu anjo"? - Perguntei sorrindo nervoso. - Peguei teus dvds.
- Estou sabendo, estou sabendo de tudo.
- Escuta, não sei o que ela te disse, mas não é verdade.
- Vem logo, Carlão, deixa de conversa. Aliás, vem não, vamos nos encontrar no barzinho, por favor. No junqueira, em frente ao meu apartamento.
- Lá chegando, ela chorava copiosamente. Um copo de cerveja na mão.
- Bonito, Carlão, bonito pra a minha cara.
- Clarinha, eu nem encostei nela. É tudo mentira.
- Mentira nada. Ela tava de roupinha de dormir e te mandou entrar pro quarto dela.
- Mas amor, eu fui embora, eu fui embora.
- Ela te mandou pegar os filmes, você pegou, demorou procurando. Ela estava de calcinha na cama te esperando.
- Clarinha, eu peguei os Dvds e fui embora.
- Que tipo de homem é você?? Que tipo de homem é você? Acha que é isso que eu quero pra mim? SEU FROUXO.
- Pera, pera, pera. Me perdi em algum lugar, não é possível. - Falei atarantado.
- Perdeu porra nenhuma. Quem se perdeu fui eu. Foi um crime em conjunto, meu amigo. Eu fui o mandante e elas me executaram. Ela levantou e foi embora.
- Caralho, Carlão. Nem sei o que te dizer. Deixa o trabalho de hoje pra lá, vamos tomar umas gelosas.
Sentamos no bar. Abrimos a primeira cerveja às 08:40 da manhã. Lá pelo meio dia, bêbado, talvez sensibilizado pelas pancadass do fim de semana. Ele vira pra mim e fala:
- Ela nem quis os dvds, porra. Nem quis os dvds.