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quinta-feira, 2 de abril de 2009

Encontro com a morte.


Bom, conforme vinha prometendo há(corretamente posicionado) algum tempo, segue mais um conto.

O Título originalmente seria "Encontro com a morte", por isso mantive-o no título da postagem, porém à medida que fui escrevendo, mudei para "Duas mortes".

Sem mais delongas, segue o conto. Espero que Gostem.



Duas mortes.

 

 

É quente.
Sinto o calor da mortalha que forra, abafado pelos
10 centímetros de pinho polido acima, abaixo e dos lados.

Não devia estar sentindo isso, mas sinto.

Sinto perfeitamente a movimentação do corpo ao primeiro tranco, resultante do acionamento da manivela que desce o caixão. Sinto a escuridão aumentar a cada palmo percorrido abaixo da terra. Ouço os primeiros punhados de terra jogados pelos parentes, amigos.

Jogados por mim.

 

Meu nome é Sandro Arnaldo Junior. Dr. Sandro Arnaldo Junior.
Neurocirurgião.

O nome, bem como a profissão, herdei do papai. Talento é genético, todos sabem disso.

 

Lembro de uma manhã. Estava com meus amigos, jogando bola. Sonhava em ser jogador de futebol. Diga-se de passagem, jogava muito bem. Meu pai da janela gritava e me chamava:

- Sandrinho! Entra meu filho, você é bom de bola, mas a faculdade de medicina é concorrida, tem que ter uma boa base.

- Ah pai, mas eu quero jogar bola. – Argumentei arfando.

- Como profissão?

- É, pode ser..euheuheuhe – respondi entre risadas e arfadas decorrentes do jogo.

- Mas eu sou o Dr. Sandro Arnaldo, não sou o Zico nem o Pelé.

- Ta booooooom. – Entrei pra casa, desejando no meu intimo ser filho do Pelé ou do Zico.

 

Passados anos de fervoroso estudo, entrei com facilidade na escola de medicina da UFBA, assim como meu pai. Ele era puro orgulho no dia. Ele era pura felicidade. Ele estava uns 20 anos mais novo.
Lembro perfeitamente de quando o Tio Guilherme chegou em casa, charuto na boca, cervejinha em lata na mão

- Parabéns, Sandro. Detonou no Vestibular, ein? – Gritou a todo pulmão.

- Muito obrigado, muito obrigado. – Respondeu meu pai, enquanto eu ainda tomava fôlego para falar.

- Sandrinho, como foi o Vestibular, me conta? – deitando a lata à mesa, perguntou o Tio Guilherme.

- Coisa boba, com todo o estudo, foi fácil. Não foi filhão? – Novamente interrompeu o papai, antes que eu conseguisse responder. Ao que me limitei a assentir com a cabeça.

- Pai, vou sair. Tomar umas com meus amigos, comemorar.

- Vai sim, filhão, vai sim. Ficarei daqui tomando umas também, em comemoração. – Respondeu vigorosamente, enquanto servia um copo de whisky pra ele e um pro meu tio.

 

Aposto que ele ficou mais bêbado do que eu. Quando voltei pra casa, meu pai estava deitado no banquinho do jardim da entrada. O copo na mão derramara em uma possível queda, causada certamente pela embriaguez excessiva. Um cigarro pendia da boca, colado ao queixo, ainda apagado.

Arrastei-o pra dentro de casa, acordei a mamãe que se disse já exausta com toda a cena passada na noite, mas ainda assim deu-lhe um banho de roupa e tudo e o colocou na cama.

 

Era a perfeita imagem de um calouro.

 

A faculdade se passou com velocidade. Tudo era pra mim muito fácil, eu tinha as dicas que precisasse em casa e tinha toda a habilidade no sangue. Legado. Como uma herança. Como se sabe, a herança é algo que geralmente você ganha sem desejar. Algo que só se adquire ante a morte de alguém. De alguém que você ama muito.

 

Anos se passam e agora eu sou Doutor. Doutor Sandro Arnaldo Junior, neurocirurgião.

Dia duro no consultório, abro a porta de casa e encontro a minha mãe – sim, ainda moro com a minha família – aos prantos.

- Sandrinho, o seu pai está muito doente. – Sandrinho...como é bom ser Sandrinho pra alguém. Como é bom não ter um título legado de Dr. Ao menos uma vez.

- Ele ta no quarto, mãe?

- Vai ver ele, meu filho, é o coração, deve ser o coração. Vai, você é médico e vai saber melhor do que eu. – E assim, lá vou eu, novamente Dr. Sandro Arnaldo Junior.

Passo pela porta do quarto e sinto calor e frio ao mesmo tempo. Um temor terrível toma conta de mim. Temor de morte.

- Pai, o senhor está bem? – Pergunto já sabendo de antemão a resposta. Eu podia sentir o frio tomando conta do meu corpo. Podia sentir a dor no meu peito. Não, não estava bem.

- Filho. – Falou ele vacilante. A voz trêmula de quem já não tem tanto tempo. Desgastada. – eu...

 

Ele continuou falando, mas eu já não conseguia ouvir. A dor no peito aumentava. O estômago parecia que ia estourar. A dor aumentava, irradiando-se para o braço, descendo para o estômago. Tudo fica branco. Turvo e branco. Lesão tecidual isquêmica irreversível.

Ouço o ranger da madeira polida em atrito com as pequenas pedras e o cimento. Ouço o som dos esforços abafados dos parentes, gemidos e arfares ecoando no próprio peito ao levantarem a pesada tampa de cimento. Nesse momento, me vem à cabeça as palavras do meu pai. Aquelas mesmas que eu perdi no momento em que minha respiração ficava mais curta e a pressão do meu peito se transformava
em dor. Quando a náusea tomava conta do meu estômago empachado, ele dizia: - Eu já não me preocupo mais com a morte. Criei meu filho. Formei meu filho, você. Dr. Sandro Arnaldo Junior, neurocirurgião. Quero que você fique com meu consultório, com meus aparelhos, até com meus pacientes. A morte já não me causa medo algum.

 

Mas a mim causa. Sinto a escuridão se tornar plena. Colocam a tampa de cimento. Eu coloco a tampa de cimento. Abaixo dela, Sandrinho. Sepultado com todos os seus sonhos, com a sua bola. Acima dela, Dr. Sandro Arnaldo. Embora Junior, Neurocirurgião.

Ângelo Pinheiro



Qualquer semelhança com pessoas reais - ou surreais - pode ser mera coincidência ou não.

19 comentários:

Ivan disse...

como eu ia dizendo: pra morrer basta estar vivo!

Anônimo disse...

Amei, veio tanta coisa na minha cabeça, as pessoas que se subtem aos sonhos dos outros, as que vencem esse tipo de coisa. Simplesmente amei...

Jamerson disse...

Parceiro vou me limitar a dizer apenas uma palavra (ou melhor, uma frase): Fantástico texto!

Abração!

Anônimo disse...

Massa.
A morte passada de um jeito incrível.

abraço.

Caio Marques disse...

Anular-se e viver a vida de alguém, ou uma vida que alguém planejou para você desde o inicio, um roteiro pronto. Por medo de contrariar expectativas, nos violentamos diariamente...
Otimo texto
Abçs

Lucas Ribeiro disse...

O fato de serem médicos não impediu a morte tão indesejada de ambos. Viver a vida enquanto vivos é a melhor forma de aproveita-la. Se lamentar, se arrepender ou precipitar-se deixa queto.

Lucas Ribeiro - Publicitário

Vanessa Alonso disse...

E nós fomos criados assim. Somos o que somos com base nas expectativas do outro. Sempre o olhar do outro, o desejo do outro. E, no final, quem somos nós? Estudo, profissão e trabalho são sinônimos de satisfação e reconhecimento dos pais: "seja bem-sucedido, meu filho!". Eles foram escravizados e algumas gerações depois nós também continuamos nos escravizando. Assim caminha a humanidade. Para quem consegue compreender a simplicidade dos seus próprios sonhos e ter a coragem de vivê-los, boa sorte! Siga em frente, antes que seja tarde demais.

Lindo texto! Ritmo veloz, pensamentos mais ainda. E eu ainda estou sem ar!

Beijos

Pietro Leal disse...

Refletir sobre a morte é
conspirar o intangível.
Afinal, morre quem vai
ou quem fica?

Viva Dr. Ângelo!
Belíssimo conto.

cam!lo disse...

Boa.
Vamos seguindo vivos.
Belo conto. Abraço.

Tiane Novaes disse...

me fez imaginar cena por cena. muito bom.

adorei o: "Era a perfeita imagem de um calouro."

beijos

KRLT disse...

Ângelo, mandou bem cara, último parágrafo fez o mundo girar viu?
hhe
bala... :D
abraço!

Valdeir Almeida disse...

Ângelo,

Há um selo para você no meu blog.
Você merece.

Abraços e bom final de semana.

Gabriel Pinheiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Candice Morais disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Candice Morais disse...

Muito bom! Ritmo ligeiro, imagens claras e desfecho angustiante.

Vivamos nossos sonhos e não os de nossos pais!

Te amo, meu escritor lindo!

P.S.:Adorei a observação final... uehueheueh! "pessoas surreais"...rsrs

Valdeir disse...

Ângelo,

O selo que você recebeu é "Este Blog é uma jóia". Para ficar mais fácil para você, aqui vai a url dele:

http://ponderantes.blogspot.com/2009/03/novos-selos-e-mais-um-premio.html

Ou então, basta clicar no meu nome, neste comentário, que você será direcionado imediatamente para o post onde se encontra o selo.

Olha, o selo é para os blogs que achamos interessante. Por isso, passei este para você. Este não têm regras definidas. Você precisa apenas, fazer o mesmo que fiz: escolhar um (ou alguns) blogs que merecem recebê-los e fazer um post sobre isso em seu blog; em seguida avisar aos seus escolhidos.

Obrigado pelos seus comentários em seu blog. Também estou feliz em ler seus textos. Há vida inteligente na blogosfera.

Abraços.

Mariza Fernandes disse...

Ótimo tema. Ótimo texto.
Estou pensando em seguir a sua dica e começar a escrever contos também.
Seu blog está cada vez melhor.
Meus parabéns!
bjos

Ricardo Aiolfi disse...

seguir o destino de alguém
apenas por questão sanguinea, acho que não seria algo que me faria feliz =/

acho que a morte já se diz ai =/



gostei do texto =]

Claudia Venegas disse...

Poxa! Não imaginava não tanta sensibilidade nas palavras, a intensidade é muito explicita nesse texto, confesso que sempre ao ler algo venho desarmada de qualquer coisa, ou expectativa e seu texto me emocionou, a parte da herança, é reflexiva, é poetica! Agradeço a leitura, obrigado pelos elogios que fez no meu blog, sinto me honrada apos passar os olhos em suas letras! Parabens.