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sexta-feira, 26 de março de 2010

Encontro com a dor




Sem mais delongas, lá vai um conto.






O Bolo Floresta Negra.




Eu me Chamo Carlos, O Carlão.

Estou aqui pra relatar um fato que me ocorreu quando eu tinha apenas 10 anos de idade, ou melhor, estava completando dez anos de idade.
Um fato que envolve um Bolo Floresta Negra e uma filmagem de festa.

Bom, vou parar com o a enrolação e partir para a história:



Era um dia de sol, lembro bem do sol forte. Maldito sol. Malditas nuvens brancas e céu azul. Eu estava com uma camisa azul e um short branco, fatos que fui obrigado a lembrar sempre por causa da fita. Maldita fita.

Sim, a fita. Esse ano, minha mãe tinha me prometido de presente de aniversário uma fita com a gravação do aniversário. Em 1988 era um luxo que nenhuma criança que eu conhecia, além das muito ricas, tinham. Até então eu estava super feliz com a fita. MALDITA FITA.

vale aqui uma pequena pausa pra falar sobre a minha mãe:

Separada quando eu tinha 3 anos de idade e meu irmão tinha 5, por ter sido traída por meu pai - fato que eu soube 20 anos depois através de pessoas que nada tinham a ver com a história - minha mãe se viu obrigada a trabalhar 3 turnos para sustentar os filhos sem deixar que nada os faltasse. E eu falo NADA mesmo. Do mais necessário aos mais supérfluo, tinhamos de curso de inglês a video-games de última geração, em detrimento disso, minha mãe tinha roupas tão puídas quanto a sua vida social e amorosa, que se arrastavam coladas a ela das 4 e meia da manhã, quando entrava no seu primeiro turno de trabalho às 23:30, quando chegava, destroçada do seu último turno de trabalho.
Olhos verdes, coxas grossas, cintura fina. Era uma mulher linda, se auto-destruindo aos poucos com cigarro e desgosto, fingindo a nós e ao mundo todo - inclua-se ela própria - que não se casara de novo por não querer "padrastos para os filhos dela". A preocupação existia, mas fato era que ela não tinha tempo pra respirar fora dos turnos de trabalho...que tempo teria ela de arranjar um namorado? Houveram alguns...rápidos, pouco marcantes. Ela merecia mais.

Voltemos à história.

Conforme citado acima, eu não tinha sido criado por meu pai. Não aprendi com ele a jogar bola, a andar de bicicleta e nem nenhuma outra viadagem parecida.

Mas esse dia eu completaria 10 anos, e teria gravação e tudo. Ele estaria lá. Quem sabe eu cortaria a segunda fatia do bolo floresta negra pra ele(a primeira seria da minha mãe, claro). Tudo isso estaria registrado em filme e eu teria 2 horas da presença de meu pai, pra assistir durante todas as outras horas de ausência. A doçura daquele bolo floresta negra e das fatias cortadas para meu pai e minha mãe, durariam para sempre. Eu estava realmente feliz. Até então.

MALDITO BOLO FLORESTA NEGRA.
MALDITA GRAVAÇÃO.
MALDITOS RAIOS DE SOL E NUVENS BRANCAS.

Começam a chegar os convidados. O telefone toca. Posso ver pela expressão de desespero no rosto cansado de minha mãe que algo está errado. Ela me chama.

- Seu pai, quer falar com você. - Eu atendo.
- Pai, você tá vindo? Vai chegar tarde? - Perguntei ansioso e já esperando pelo pior.
- Olha, meu carro quebrou. Vou fazer o que puder pra aparecer aí, mas não garanto que dê pra eu chegar.


Eu desliguei. nem lembro o que falei em resposta. O bolo floresta negra começava a ficar amargo e eu já sabia que a segunda fatia seria da minha avó.
"Meu carro quebrou??" Será que eu não merecia nem uma desculpa melhorzinha? Se eu tivesse um filho completando dez anos, especialmente um que eu tivesse negligenciado durante os últimos seis anos, eu iria à festa dele nem que fosse a pé.

Segue a festa. Começa a funcionar a cabeça infantil. Foge por um segundo a inteligência e entra a capacidade de fabular da criança. as palavras "Vou fazer o que puder" parecem fazer sentido. Fico feliz de novo.
A cada vez que a buzina toca, meu coração dispara. Fabulo que pode ser ele. Nunca é. Novo parente, novo amigo, nova decepção.
Lá fora eu olho o sol. Brilha sem a menor piedade de mim. MALDITO SOL. Podia ao menos estar chovendo torrencialmente pra que tornasse crível o fato de que pegar um ônibus para o aniversário de dez anos do filho era algo impossível. MALDITO SOL E MALDITAS NUVENS BRANCAS. MALDITO CÉU AZUL, DESTRUÍDOR DO MEU FABULÁRIO, DO MEU DELÍRIO DE CRIANÇA.
Essa tortura se alastrou por mais 4 horas. E eu, esperançoso, insistia pra que não se cortasse ainda o bolo floresta negra.

Os convidados já começavam a ir embora quando eu aceitei que o bolo fosse cortado. primeira fatia, pra minha mãe, claro. Segunda fatia, pra minha avó. Eu até provei do bolo, mas era de um féu inesquecível. Ele e todas as suas malditas bilhares de calorias em forma de diabetes. MALDITO BOLO FLORESTA NEGRA.

Me diverti na festa, claro. Eu tinha dez anos...nessa idade a nossa capacidade de criar, de fabular, vai ao ponto de conseguirmos transformar uma caixa em um carro, um pedaço de madeira em uma espada e uma festa dessas em algo feliz.

A festa teve bons momentos. A gravação. MALDITA GRAVAÇÃO. Foi sem dúvida o maior presente. vale ressaltar que minha mãe só teve como bancar esse presente porque os seus 3 turnos de trabalho eram como editora de pauta em um jornal local, portanto, câmera, assistente de câmera e tudo mais eram mais acessíveis.

Apenas dias depois, quando a fita foi editada é que ela ganhou o caráter de maldita.
Em algumas cenas eu enxergava a presença de minha mãe, em outras eu enxergava a presença de meus amigos, algumas enxergava a presença de desconhecidos(amigos de amigos, sabe). Haviam cenas em que eu enxergava a presença daquelas histórias bem típicas de festa, como o gordo que fica embaixo da mesa detonando os doces e pãezinhos, aquela professora que a gente nunca vai contar a ninguém que achava muito gostosa já naquela época fazendo um carinho despretensioso e deixando-me completamente sem graça... Mas não. nunca me diverti com essa fita. MALDITA FITA. Nunca consegui a assistir sem chorar, porque em todas as cenas eu enxergava a ausência do meu pai.


Hoje. Anos e anos passados às vésperas do meu aniversário de 36 anos, ainda acho extremamente cafona filmagem de aniversário e tento fugir de todas assim que a câmera chega perto de mim, e ODEIO, ODEIO bolo floresta negra.






P.S. : Esse conto é uma obra de ficção e a associação de qualquer fato ou personagem desse conto com pessoas e fatos da vida real é mera coincidência, inventividade e imaginação excessiva.

19 comentários:

Wanderley Elian Lima disse...

Nossa menino, eu já ia até começar a chorar de peninha de você, mas é tudo ficção. Muito bom, a história me prendeu até o fim.
Grande abraço

Elaine Barnes disse...

Putz,chorei! Agora que disse que nada tem a ver com você,alguma coisa deve ter será que não? De qualquer forma um história emocionante do cotidiano de milhares de crianças que sentem a ausência de um dos pais. Ficam marcadas por essa dor. Adorei sua criatividade e fiquei aqui envolvida e triste rs... Montão de bjs e abraços

Lucas Ribeiro disse...

Parabéns pelo aniversário e pelo conto Ângelo. Muito criativo a metáfora do modo interpretada por mim.

Desculpas esfarrapadas. Quanta falta de esforço e consideração... Elas doem mesmo sendo mentira. quando somos crianças não nos preocupamos, na verdade, não entendemos a maldade do fato. Mas quando adultos as pessoas de D.E. FDPs, continuam mostrando a falta de consideração e agora sim percebemos, analisamos, com mais precisão e uma das saídas é curtir como crianças e esquecer o fato de sacanagem mesmo entendendo-o.

Jamerson disse...

É meu irmão, o bom e velho Carlão está de volta! Um pouco sentimental, mas está de volta! Hehe.

Excelente conto parceiro.

Abração!

Anônimo disse...

=(

Sem palavras, te conheço, conheço o Carlão, e me tocou tão fundo que chega até a doer!

Fernanda disse...

Eu não chorei, mas isso não quer dizer nada.
Você é foda.

Anônimo disse...

Parabéns. Redação excelente. Texto envolvente. Amei!!!!

Silvinha

Victor disse...

Tenho um Blog tbm, es estou tendo acessos a outros. Olha, muito bom seu texto viu, de uma fluidez incrível, narratividade bem sacada, quando crescer quero escrever assim.

Victor Diomondes disse...

Deveria justificar minha ausência no lar de suas letras até o momento. Mas serei urgente, palavra essa que é sagrada naquele lugar que acontece às segundas-feiras.

Seu texto envolve, e é de surpresa. Quando batemos o olho na linha seguinte, já estava respirando junto com cada palavra.

O texto é assim, sem truques. Sem "viadagem".

Arlon Souza disse...

Gosto muito quando você cria metáforas como "o bolo floresta negra começava a amargar", sinto falta de mais passagens como essas, formas poéticas, as cerejas... rsrsrs.
O que é permeável entre ficção e autobiografia tem sido uma tendência em outras artes, como no monólogo Absoluta, de Márcia Andrade, e no filme Álbum de Família, de Wallace Nogueira. É um recurso consistente para criação.
Gosto da contemporaneidade do bolo "floresta negra" - infância e Perini. Não sei em que momento você decide um texto como pronto, mas você tem muito potencial na escrita. Gostaria de ver mais literatura, mais simbologia, em sua narrativa. Te gosto de graça. Abração!

comunicadoras disse...

Oi Angelo! Agora sei que é conto...não vai acontecer de novo aquela confusão!!! É conto, mas um conto sem ficcção nos dias de hoje; infelizmente há muitas crianças como a que descreves, crianças que vêem o seu bolo de chocolate transformado num grande pedregulho e o mel dos doces de repente virando fel; é muito triste vermos crianças que têm tudo, celulares, jogos de computador, tenis de marca, mas têm também um olhar triste denotando que o mais importante lhes falta: atenção, carinho e um pouquinho do tempo dos pais para com elas brincarem, isto quando têm os pais, muitas vezes presentes só pela metade. Outras há que nem isso têm. Sabes, tenho muita pena das crianças e dos idosos...ambos têm muitas vezes de comer um bolo que de doce só tem a aparência.Um beijinho e até à próxima
Emília

ANA PAULA disse...

Até custa a crer que seja ficção, embora, infelizmente retrate a vivência de muitas crianças.
Seu texto é tão envolvente e incrivelmente bem relatado que não consegui parar um segundo...até ao fim
Real demais!!
Beijo...adorei mesmo
Ana Paula

La Concha disse...

Muito bonito, bem escrito, tocante... Me emocionou, obrigada por me permitir visitar seu cantinho. Um beijo!

Guilherme disse...

Incrível...
só...
incrível...

Brechó Estilo e Atitude disse...

Amigo que arraso !!!
Você é fodástico mesmo, sabe disso. Faz com que sejamos transportados para cena por conta da clareza que descreve tudo, sentimentos, cenários, putz...PARABÉNS !!

Tiane disse...

Muuuuito bom, angel. Parabens! ;*

Rodrigo Feitosa disse...

quem tem pai ausente sofre lendo isso.

vc é um grande filho da puta!

Meus parabéns pelo excelente texto. Adorei

Vanvanuau disse...

Toda criança gosta de bolo e de festa de aniversário. A alegria de receber os amigos, parentes, os presentes, parabéns...É triste a história de Carlos porque ele sentiu falta do pai. Mas vejo também que ele deu tanta importância a ausência do mesmo, que não aproveitou a festa preparada com tanto carinho e dedicação pela mãe, que trabalhou os 3 turnos para realiza-la.

Unknown disse...

Com o tempo os bolos se tornaram mais comestíveis, e as lembranças que fiquem pra trás assim como o amargo da tristeza.

Amei, e estou com orgulho alheio...