Segue um pequeno conto.
Um tanto mais ácido do que o último que aqui postei.
Espero agradar. e aguardo comentáriuos sobre o conto.
Como uma luva
- Doutor Carlos – Gritei só de sacanagem assim que o vi, sentado de gravata. De terno e gravata, sentado no sofá da sala de espera, aguardando o chefe. – tô sabendo que vai ser promovido.
- Chega aqui, aqui pertinho – Disse o Carlão, com um tom sério que nunca tinha experimentado nas suas palavras.
- O que foi rapaz? ta meio verde.
- Porra, velho. Não vai dar.
- Não vai dar porque, Carlão? Até o chefe acha que vai dar.
- Não vai dar, porra! Eu tenho medo de não me encaixar.
- Não se encaixar em quê? Você é lá homem de ter medo, Carlão?
- Você já viu gente que não se encaixa? É uma merda, uma merda de dar medo.
- Que papo é esse, Carlão, não to te reconhecendo.
- Olha ali, ta vendo ele ali? – Pergunta, apontando pra o funcionário do almoxarifado, um meninote efeminado de seus, ironicamente, 24 anos. – Ele não se encaixa. Filho de pais rígidos, surrado pelo pai desde pequeno. Criou ódio pela figura masculina. O ódio é tão grande que veja como ele vence a figura masculina. Ele coloca a figura masculina de quatro e mete-lhe um caralho no rabo, é assim que ele vence. Sabe por quê? Porque ele não se encaixa, é por isso. Não se encaixa no mundo masculino.
- Puta que pariu, cara, você ta no terror.
Por um minuto fez-se o silêncio. No olhar do Carlão eu via um inédito pânico. A gravata definitivamente o enforcava. O seu aspecto era de desolação. Eu pensava: Será que é verdade? Pode a neurose dele ter respaldo na realidade? Podemos vencer nossas aflições atacando a nós mesmos e matando a imagem que as provoca através de reflexos em nós mesmos? De repente me veio à cabeça uma cena. O menino do almoxarifado no parapeito de uma janela, em pé. Olhando pra uma multidão de homens caminhando em sua direção, talvez em seu salvamento, encabeçada pelo seu pai e gritando “se derem mais um passo eu me atiro lá embaixo”. O passo dado, mergulhava o corpo no ar. Porém, enquanto cortava o ar era o rosto do pai dele a experimentar todo o terror. O rosto só mudava quando atingia o chão e lá se espatifava. Tudo fez um sentido assustador. E assustador era a palavra, voltei a falar antes que começasse também a acreditar naquilo.
- Carlão, é a sua chance de ascensão na carreira.
- Velho, eu quero continuar fazendo a merda que eu sempre fiz. Vim aqui pelos outros. To me sentindo um merda. Buscando um cargo pra que os outros vejam. To que nem o “Homem-semblante”.
- Caralho, Carlão, quem diabos é esse “Homem-semblante”?
- Você vai vê-lo daqui a pouco. Ele vai estar na minha reunião de promoção.
- Ah, então ele é do seu setor? – Perguntei com real curiosidade.
- Ninguém sabe de que porra de setor ele é. Ele tem um cargo tão indeterminado que não dá pra ter idéia do que ele faz. Ele está em todas as reuniões. Ele carrega sempre um livro debaixo do braço, o assunto depende do semblante que ele está assumindo no momento. Quando chegou aqui era líder estudantil. Carregava livros de pensadores libertários andava sempre vestido em uma calça jeans, camisa dobrada nos cotovelos e ideais socialistas, agora anda de terno e gravata e veste uma atitude séria de executivo. Os livros mudaram para administração empresarial, gestão de negócios e outros bichos do tipo. Continua lendo pelo sovaco e jogando na nossa mesa quando vai conversar conosco. O importante é todo mundo saber quem ele é dessa vez.
- E porque “homem-semblante”?
- Porra, achei que tu fosse mais vivo. Não lembra aquela época que ele namorou uma psicóloga? Não tirava essa palavra da boca. Daí eu lancei o apelido.
- Carlão, tenho que ir. Trabalho pra fazer.
- Eu Já sei. Vou jogar tudo pra cima. Isso não é pra mim.
- Pensa bem, rapaz, pensa bem.
Saí dali pensando pra caralho em tudo. Quisera eu ter a mesma coragem do Carlão e jogar tudo pra cima. Quisera eu não desejar uma promoção. Quisera eu ao menos ter coragem pra dizer “Joga essa merda pra cima mesmo, cara. Sou mais você.” Mas não, saio pensando na oportunidade que ele perdeu. Saio pensando em quanto seria bom pra mim a gerência de qualquer coisa ali dentro, sento meu rabo em frente ao computador e escrevo um texto que não sai de mim, sai da empresa.
Isso me faz pensar no “homem-semblante”. Ele está sempre buscando um cargo...indefinido, mas sempre tem alguma gerência, alguma gestão. Muda com a mesma força que muda de ideais. Me vem imediatamente uma imagem à cabeça – sempre me vem uma merda de uma imagem à cabeça. Um outdoor em branco. Toda manhã eu passo por ele. Tem uma pichação feita a spray dizendo “vendo este vazio”.
VENDO ESTE VAZIO.
Em spray vermelho. Vê-se que foi escrito às pressas pelas letras trêmulas. Nunca tinha parado pra pensar no conteúdo filosófico da frase. No conteúdo de protesto da atitude de pichar um outdoor em branco com isso. Principalmente no quanto isso tinha a ver comigo, com o homem-semblante e com tudo o que o Carlão estava negando.
Passo pela sala de espera. Nem sinal do Carlão. Bato meu ponto e vou pra casa.
Era uma sexta-feira, o que me lembra que só retornarei à empresa na segunda.
Penso no final de semana e novamente me vem à mente a merda do outdoor.
VENDO ESTE VAZIO.
Domingo, praia, cerveja. Encontro o homem-semblante na areia. Usando uma viseira, suado, de sungão, mascando chiclete e agitando próximo à rede. Nos finais de semana ele é jogador de futvôlei.
Ele corre ao meu encontro. – Soube do carlão? – Pergunta arfando
- Não, não soube, o que foi?
- Disse pro chefe que só ficaria se fosse com o trabalho antigo, mas recebendo o valor da promoção.
- Hum, e aí?
- Aí o chefe disse que não seria possível. Ele disse que também não seria possível de outra forma.
- Porra, e aí? Deixa de mistério.
- Foi demitido. Disse que com o dinheiro da demissão vai abrir um bar.
- Saquei. Faz sentido. E o cargo?
- Eu incorporei o cargo. Agora sou Sub-Gerente comercial e gestor de eventos externos, mas também assumo as responsabilidades de gestor institucional.
Despedi-me sem formalidades e segui pela beira do mar. O mar molhava os meus pés enquanto a cerveja passava pela minha garganta e molhava a minha alma.
VENDO ESTE VAZIO.
E tudo fazia sentido. O ciclo se fechava. E cada cargo se encaixava em quem o preenchia.
Como uma luva.
Ângelo Correia Pinheiro